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As duas portas, sempre abertas, no cômodo caiado há
muito, mais banco que mesa e, fechando a porta do fundo, o balcão, fora a fora,
dividia a mercadoria do freguês. Dividia a prosa fuxiquenta com todo tipo de
gente que ali parava. Gente vinda dos arredores, os moradores do lugar e quem
mais chegasse.
Seu
Alcebíades era manco, mas havia virado Manco na maldade de gente poderosa que
firmou esse chamar. No começo, se importava, depois foi se acostumando.
A venda ficava na Rua de Cima, quase em frente da
igreja em construção. Era ali que o pai tomava as suas, todo dia, de tardinha.
Carecer não carecia, pois o cavalo levava ele sozinho para casa, mas era do
costume, desde que fui ficando moça, buscá-lo na venda. Pouco pela quantia que
ele bebia e levava para beber no caminho, pouco para vigiar as anotações dos
haveres que se faziam no fiado dele, e muito para ver os moços e ouvir a
falação do Manco. Entretinha.
Ele já estava acostumado, saía dali noite indo, eu na
garupa. Varava a Vila pela Rua de Baixo até ganhar a estrada do Lajeado e, de
quando em quando:
- Qué um gole, minha fia?
Eu nunca queria. Quando passávamos a última casa da rua
o medo sempre tomava conta. No cochilo dele, vez em quando despertava.
- Qué um gole, minha fia?
- Quero não, meu pai. E o medo tomava conta.
Num dia, de repente, no negror da noite, apareceu
aquele vulto enorme, desmontado, puxando o cavalo pela rédea, com aquele clarão
na cara parecendo fogo pegando embaixo do chapéu.
Meu coração foi parar na boca, o pai deu um pulo e pôs
a garrafa em riste.
- Qué um gole, seu moço?
O clarão na cara da figura desapareceu no escuro e ela
também. O medo rodopiou por dentro.
- O que é isso, minha fia?
- Assombração. Respondi, tremendo dos pés à cabeça.
De novo a cara de fogo apareceu, e não estava só,
vinham muitos vultos atrás. Até o cavalo dessa vez se assustou. Quando o pai ia
virando o animal para correr, aquela voz grossa falou, com os braços abertos
como se quisesse pegar a gente:
- Noite, moça Adelaide. Noite, seu Benzinho.
Era Baldino chegando e parecia assombração quando tentava
acender o cigarro de palha com a binga nova.
Quando cheguei, no outro dia, para buscar o pai na
venda, lá só se mangava dele, oferecendo pinga para assombração. Ele mesmo quem
contou.
- E elas bebe mesmo. Dizia ele.
Foi o que bastou para o Manco e os amigos fazerem a
brincadeira, o escolhido foi Irino. O dia, em que eu não fosse buscar ele.
Irino arranjou um lençol de algodão, furou o lugar de
enfiar a cabeça, separou numa lata cal e alvaiade e ficou esperando o dia em
que estivesse só. Nesse dia, ao sair da venda, deram para ele mais uma garrafa
cheia, a sem paga. A noite era um breu. Irino, ajudado pelo Manco mais Nacleto,
vestiu o lençol, passou nos cabelos, no rosto e no chapéu, o alvaiade com cal e
saiu a galope. Quando chegou na estrada do Lajeado, escolheu a melhor moita.
Acendeu sete velas.
Ia o pai pelo caminho, no seu cochilo, gole, cochilo,
outro gole. Quando ouviu no meio do mato:
Se do mal for
o pagão
Combino
judiar não
Se do bem
for o cristão
Espeto com
meu ferrão
Ele assustado.
- Virgem Maria!
Chegou perto e viu a roda de vela e Irino aparecendo
com aquela roupa muito maior que ele. A luz das velas fazia a sombra dançar
pela copa do pequizeiro, era assombração em pessoa.
- Qué um gole, seu moço? Esticando a mão com a garrafa.
Irino olhou bem para ele e falou.
- Se do bem for o cristão, espeto com meu ferrão.
O pai respondeu:
- Sou do bem não, nem do mal, seu moço. Sou só do gole
e da boa prosa, seu sombração.
- E é boa essa pinga, cristão? Perguntou Irino.
- Das boa, é lá da venda do Manco, cunhece? Fica no Vai
Vem perto da igr..... intendência. O Manco num ingana ninguém, só gosta de
falá, as vêiz, um poco do alheio.
Desarrolhou a garrafa e passou para Irino que, surpreso
com a reação dele, acabou tomando um gole grande e começou a fazer a sua
latumia.
- Tenho que
levá ao menos trêis alma comigo.
O pai não
deixava ele falar e foi dando pinga e fingindo beber igual, dando pinga e
ajudando a escolher as almas, desconversando a conversa dele. A noite foi
passando, a assombração se embebedando, meu pai dominando a conversa.
- Qué mais
um gole, seu sombração?
A situação
ficou no laço bem apertado em volta de Irino, já bêbado de cair. Foi amarrado
na sela e levado para a venda, puxando o cavalo, o pai com a assombração amarrada,
vez em quanto tomando uma talagada e apontando com a garrafa.
- Seu sombração, qué um gole? Seu sombração.
O dia ia amanhecendo quando ele bateu na porta. O Manco
abriu, levou um susto. O pai entrou com Irino, amarrou ele no pé duma mesa e
pediu duas pingas. Para o Manco ver a assombração beber.
Manco contou que era brincadeira, que aquele era Irino.
Pai dizia que era só paricido. Que a sombração era ardilosa, gostava de parecer
com os do lugar prá fazê enganação. Que ia esperar o povo na venda prá ver que
a sombração gostava é por dimais de pinga da boa.
E foi chegando gente, a venda foi enchendo e o pai
pondo pinga na boca de Irino, amarrado no pé da mesa. Foi preciso que jogassem
um balde d’água e lavassem a cara da assombração, ali, no meio da venda, com o
povo olhando para ele acreditar.
E foi desse jeito que Irino, desse dia em diante,
passou a ser mais conhecido como Irino do Além.
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