Os dois mastros da
gambarra já apareciam ao longe, no lusco-fusco do dia. As carniceiras
preparavam seus amanhos, sabiam dias longos pela chegada dos navios. Danduca, a
mando de ganho, primeira a chegar, ficava no barranco esperando tarefa com os
olhos compridos postos no horizonte, sempre assim.
Dela diziam fazer mandê
escondida, por isso andava sempre com os olhos baixos, postos no chão; era
arredia nas conversas, mas sabia ganhar na rua mais que todas. Retalhava uma
dianteira com talhos rápidos, garantindo o serviço, esperava dia após dia e a
cada um a destreza lhe garantia o lugar no açougue e a inveja das outras.
Na verdade, esperava o remeiro Pycuryauá buscá-la. Viria cedo, antes do
sol tingir a barra do Rio Pará. Tinha fé na santa, não nos rituais que lhe
atribuíam fazer escondida; rezava todos os dias para que ele viesse logo e para
que a santa perdoasse sua fuga.
O combinado era Pycuryauá voltar à
aldeia Urubu, derrubar a itaúba e lavrar a canoa para buscá-la; viria sem ser
visto, escondido na noite, margeando até o barranco; dali remariam subindo pelo
Acará, até encontrar as terras do Abaribó, sonho de todo escravo e de muitos
servos.
Nos primeiros dias de
espera, Danduca rezava quanto podia, assustada com a decisão tomada; depois
mais ainda pela demora dos dias todos. Ouvia, na rua e no adro da igreja, as
conversas sobre fugidos capturados. Ouvia sobre o temido João Cafute,
descendente do cego Bocovó, famoso na memória dos mais velhos que usavam seu
nome para amedrontar, principalmente os escravos novos.
Contavam dele histórias
de muita valentia e ferocidade. Senhor de teres, escravos e haveres; sobreviveu
ferido, trancado como comida, depois de uma emboscada; conseguiu fugir e acabou
vagando e envelhecendo pelas ruas arruinado e louco, dizendo-se o único a escapar vivo dos
abaribós.
Danduca tremia de medo só
de pensar na captura, pondo alcance, mandando aquele homem cuja alcunha,
ascendência e fama atemorizava todos. Imaginava do que era capaz o neto do cego
Bocovó; via-se arrepiada, comutando o
que destemia.
Pycuryauá demorando mais que o tempo marcado...
pensava desistir, conformar, mas queria mais ser livre. Rezava e esperava no
barranco todos os dias antes do claro. Talhava a carne com a mesma rapidez que
desejava, quando em fuga, impor aos remos e esperava pela outra manhã.
Acompanharam, quando
saíram do Açougue Grande, as pessoas se juntando nas ruas, formando uma
multidão para ver o desembarque dos presos de Muaná, passando nas ruas, o
escárnio da população, os reinóis incentivando
com imitações obscenas das janelas e portas do comércio, paramentadas como para
uma procissão, as toalhas ornando chicotes, palmatórias e grilhões, numa atitude
de desprezo com os mestiços e com os que queriam se juntar ao império
brasileiro independente.
Danduca, desinteressada,
mal passou os olhos pelos presos, nem se deu conta do olhar penetrante como
lâmina afiada que João Cafute lhe dava enquanto vinha se aproximando por entre
as pessoas que se afastavam, dando caminho. Ao vê-lo em sua direção, as pernas
tremeram, a boca secou e a vista embaralhou. Acordou sendo abanada por ele
embaixo duma sombra. Sobressaltada, se desvencilhou, correu como nunca. Foi
como se visse o diabo em pessoa.
A vida passou a ser um
tormento; esperar Pycuryauá todos os dias e nos mesmos fugir do diabo que a
perseguia, e ele chegava cada vez mais perto, só não desrespeitava na rua por
ser ela escrava de ganho de padre importante e influente. Rezava agora também
para não vê-lo nunca mais no seu caminho, que fosse cuidar dos vezeiros de
algum senhor.
Mal a noite acinzentou o dia, ela já estava na
sua vigília. A aragem trazia um frio no perfume da aurora que fazia o corpo de
Danduca arrepiar. Olhava o horizonte, desesperançada quando ouviu um barulho
farfalhento de remo batendo capim. Procurou seu rumo com o coração em
disparada, sabia ser ele encostando a canoa nova no lugar combinado. Desceu o
barranco apressada e deu de cara com João Cafute que a agarrou e dominou ali
mesmo.
Seu corpo não apareceu,
dada como fugida, nunca mais foi vista, seu dono nenhum anúncio pôs e nem
contratou a captura.
João Cafute passou a vida
toda escondendo com os cabelos, a falta da orelha esquerda, enterrada dentro do
corpo de Danduca.
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