sábado, 12 de janeiro de 2013
Para Onde Irão Tantas Imagens?, por Aurélio Michiles
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Para Onde Irão Tantas Imagens?, por Aurélio Michiles
A aventura do cinema é uma viagem muito antiga que vai das sombras e da fotografia ao século XXI — a era da imagem digital, virtual. E, como todos podem constatar no cotidiano, as imagens se transformaram numa espécie de segunda pele. Admiramos, contemplamos e interagimos com elas. A questão se resume naquilo que “deu na internet”.
A Amazônia tem muito a ver com essa história. Faz parte do imaginário, numa curiosa relação da invenção do cinema com a Amazônia. Sim, desde o princípio o cinema esteve presente entre nós, forjando um imaginário sobre nossa região, ora como ficção, ora como documentário. Com certeza a referência é ao cineasta pioneiro Silvino Santos (1886-1970) — a sua produção é um dos maiores legados sobre a paisagem natural e humana. Pode-se lamentar que muito do acervo de sua produção fotográfica e cinematográfica tenha se perdido, mas pode-se, assim mesmo, apreciar ainda hoje mais de mil fotos em chapas de vidro e alguns dos seus filmes, como “No Paiz das Amazonas” (1922), “No Rasto do Eldorado” (1924) e consideráveis fragmentos de outros.
Mas isso não quer dizer que os documentários realizados por esse pioneiro estejam mais próximos da realidade. Ao contrário: muitas vezes o documentário tem fomentado a idealização exacerbada sobre o conteúdo dos fatos que se deseja mostrar. Nesse sentido, a Amazônia tem sido aquilo que fazemos dela ou faremos com ela. É à nossa imagem e semelhança. O emaranhado das árvores, plantas e dos cipós que se refletem como paisagem na terra ou nos rios nos leva à metáfora do emaranhado de megapixels que nos envolve na nossa contemporaneidade.
A Amazônia está presente no cotidiano da humanidade. Ela representa desespero e esperança — a nossa ficção ou o nosso documentário. Em confronto com a globalização, que parecia zerar tudo e todos, o que se vivencia é o contrário, a permanência fundamental de culturas construídas a partir das crenças desenvolvidas em geografias determinadas: nada mais é estranho e o estranho é o estranhamento diante do outro, porque o outro sou eu mesmo. E eu mesmo encontra-se armado 24 horas com os sinais dos celulares e da internet. Essas são flechas em busca de alvos certeiros: a intercomunicação interpovos, e não são apenas meios auditivos, mas transmissores de imagens. A solidão de alguém que habite na selva amazônica pode ser a mesma do habitante nas selvas de pedra.
A transmissão ao vivo do homem (aparentemente solitário) pisando na superfície lunar, na década de 60, foi a desconstrução da linha imaginária construída ao longo de milênios no inconsciente humano. O homem pisa na Lua, observa como um voyeur a imagem do lar planetário. Essa janela indiscreta nos despertou para a verdadeira dimensão da nossa frágil existência. Somos parte da poeira cósmica.
Essa espetacular visão diante desse evento pode ter sido um dos fenômenos que levaram à despolitização das imagens e conduziram ao mundo dessacralizado. Hoje, todas as oferendas são emitidas ao redor do altar da imagem. E todos desejam servir a essa seita, beber no altar da fama nem que seja por um segundo, senão suas “verdades” não existem.
Diante dessa desconstrução de identidades, o cinema documentário surge como reação para o reencontro da autoestima, daí a sua repercussão atual como linguagem e gênero. E é diante desses fatos que o cinema toma a forma de um espelho que só a ficção não dá conta e aí, como todo dia os olhos, ouvidos e cérebros armazenam imagens registradas nos quatro cantos do planeta... através delas todos se tornam cúmplices ou meros espectadores.
Mesmo assim, o cérebro parece ser insaciável em registrar imagens. Nesse sentido, os documentários têm exercido fascínio por desvendar ou multiplicar os fatos, numa espécie de rede imaginária e espetacular da história. Cosme Alves Netto (1937-1996), um dos mais importantes curadores de cinemateca, já em 1988 dizia: “Acho que o filme antigo de ficção, para nós [cinemateca], hoje em dia na verdade é um documentário. Já deixou de ser ficção. Ele é documentário pela enorme soma de informações visuais que fornece para sempre”.
A partir dessa afirmação, resta-nos constatar um dado curioso. Há a geração que ia buscar as imagens onde estivesse, sobretudo em cinematecas, arquivos, jornais, telejornais... Hoje, as imagens estão dentro de casa. Antes mesmo de nascer, a pessoa já tem a imagem registrada através de um ultrassom de alta definição. E essa abundância de imagens obriga a considerar que é necessário fazer uma desconstrução delas, voltar ao homem nu, despido da imagem-gênese, quer dizer, zerar tudo, inclusive aquela imagem do mito refletido num espelho d’água.
E isso significa o quê? Que vivemos imersos em uma inflação da imagem, em um processo de banalização dela. A credibilidade que você tem na imagem hoje é absolutamente relativa. Não sabemos até que ponto a imagem que estamos vendo é verdadeira.
Em uma visita ao Brasil, o papa Bento XVI foi recebido em Aparecida por mais de 300 mil pessoas. Na imagem transmitida pela TV, viam-se milhares de luzinhas. Ao examiná-la em detalhes, descobre-se que não eram velas: eram celulares. Eram quase 300 mil fotos do papa! E aí vem a pergunta: onde vão parar essas imagens? Nas cinematecas? Pode-se considerar, e de uma maneira perversa, que se encontra em processo uma cultura do não álbum da família, este que é um dos grandes acervos da documentação de um povo, que pode ser acessado por gerações sucessivas para contar sua história. As imagens, hoje, dentro dos celulares e dos computadores, encontram-se ameaçadas antes de se tornar história. Já são comuns relatos de pessoas que perderam milhares de fotos guardadas num celular ou computador, seja por um roubo, acidente ou vírus.
Estão perdidas para sempre. O mesmo não se pode afirmar das imagens amazônicas registradas por Silvino Santos faz um século. Mas não foi só ele quem registrou. Muitos outros, movidos pela curiosidade em fazer história, a contaram por meio da imagem. Resta a esperança, pela quantidade de imagens produzidas e sua probabilidade de sobrevivência, que muitas possam encontrar o seu lugar: as cinematecas.
Aurélio Michiles, diretor de “Que Viva Glauber” (1991) e “O Cineasta da Selva” (1997), está realizando “Tudo Por Amor ao Cinema”, um retrato do crítico e curador Cosme Alves Netto (1937-1996).
Via http://www.etudoverdade.com.br/periodico/2013/coluna/coluna.asp?lng=
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