Era só o poeta envelhecido com
seus demônios, cansado, que voltava como se fosse possível voltar com todos
eles. Deixar as cicatrizes cerzidas com o fio dos caminhos e se lembrar de ser
são. Era só o poeta, em metáforas; de alma e corpo, peregrino pela vida,
juntando pedaços desde que partira.
Era só o poeta e seus demônios que
calavam versos e secavam lágrimas. Ele voltava à origem naquela madrugada de
casas adormecidas e ruas silenciosas.
O dia amanhecia no quintal,
colorindo os rastros que ela deixava quando caminhava para o portão.
Parecia adivinhar quem chegava. Naquele
abraço amoroso recebeu suas lonjuras. E eram tantas! Ele olhava para a mãe e as
palavras pulavam do pensamento, como se ela as dissesse.
sou a mulher
que finda, ereta
e insubmissa,
a última etapa da vida
sou a mulher
que chora,
pelos cantos,
escondida,
o tempo que só
dentro de mim ficou
sou a mulher
que carrega no ventre
o fim latejando,
minha primeira gravidez
e meu derradeiro parto
sou a mulher
ereta e insubmissa,
que desde nascida
finda
Olhava seu pai, enrolando o
cigarro para lhe dar com as mãos em calos e perdão, as palavras falando em silêncio,
como se ele as dissesse.
do eito
onde capino o dia,
confiro meu verso,
pari o poeta
Da porta dos fundos da casa
avistava os caminhos, espalhados no lugar da infância, iguais e distantes. Sem
se dar conta, os passos levavam para a Meia Légua, guardada pelo buriti
solitário, farfalhando.
sina de ser tão, sertão
posto o horizonte no dia,
linha estendida na imensidão,
caminho de tropas passando
vento balança copa e tronco
ensinando dançar,
ninho de juriti,
folha nova despertando,
cacho, coco, capivaras, bem-te-vis
chuva fina na terra fértil
fecunda a raiz lançada aqui
passeia o sol no compasso
traça a luz, projeta horas
ser tão, sertão
nos rastos das boiadas
seguindo
lusco-fusco, vaga-lumes
solidão
noite que a lua segue em compasso,
dança
ermo de cerrado, sinfonia,
solo de pirilampos
escutado sob
o silêncio das estrelas
o tempo são marcos
de ser tão, sertão,
na terra
onde folhas viram asas
do meu tronco buriti
Ouvia dentro a voz, era o poeta
ouvindo, recebendo os versos, se calando em versos, ouvindo o convite do rio.
molha os pés
e as mãos em calos
nas águas da infância,
sou rio ponte,
rio pedra,
rio fonte,
sou caminho perdido
na curva do tempo
sou rio indo, ardendo
queimando paixões
sou rio ido
angustiado
em ser
rio velho,
jazindo,
indo, indo...
sou rio pedra,
rio ponte,
rio fonte,
indo...
Indo...
Voltava pelo trieiro, sem versos,
sem paz. Pejado de demônios perquirindo, encontrando, um a um, quem já levara
por dentro pelas estradas.
ainda somos as pessoas que ardem
e se esvaem
em procuras,
tecendo em sonhos,
encontros e despedidas,
a solidão de nossas
pequenas histórias
Passava pela porta e via a colcha
de retalhos pendurada na cerca daquela casa simples que ela sempre morou,
balançando no vento as palavras.
retalhos de vida,
dispostos juntos,
são das cores alegria
e tristeza
retalhos juntos,
dispostos na vida,
formam as cores da chegada
e da partida
retalhos dispostos,
na vida juntos,
cor das lembranças
a das saudades
retalhos de vida,
dispostos juntos,
na cor da labuta
tecendo a colcha de retalhos
com que cobres
tua angústia
Quando ele a viu, o olhar não
acreditou, o corpo não acreditou, seus demônios não acreditaram. O tempo lhe
caíra bem, lhe dera definitiva beleza e espera.
sê bem-vindo,
amado meu,
inesperado
mas bem-vindo,
amado meu
não te preparei versos e luares,
nem os braços
em abraços,
amado meu
mas sê muito bem-vindo,
amado meu,
seguiste os vaga-lumes,
não foi? amado meu
te pedia para voltar
depois de cada entardecer,
amado meu,
no piscar de cada estrela,
amado meu,
pedia aos vaga-lumes
que as imitassem sem parar
até te encontrar,
amado meu
Ele mal acreditava. Ela estava ali
na sua frente, não escondida nos caminhos, mas ali, amor igual, restando igual,
esperando igual, no tempo desigual, em lamento.
parte arrancada,
distante,
dilacerada,
mas que lateja e arde
parte e universo
história esmaecida
nas lembranças,
levada na poeira das estrelas
tempo feitor
reunindo pedaços
dentro de nós
corpos já puídos pelo tempo,
asseverando o amor
dentro de nós
miríade do que já fomos,
mutilada,
que ainda sinto
por dentro de mim
Havia tanto amor naquele abraço, o
cheiro dela era tão ela, não havia demônios ali. Se doava.
entrego
aos teus olhos
os meus em lágrimas,
nesse momento maior de amor,
te pertenço por inteiro
na lucidez
desse silêncio
com teu rosto rente ao meu
e minhas mãos
sem mágoa
te falo do meu
amor definitivo
na poesia
dessas lágrimas,
que teus olhos
também conhecem
plenitude
maior do amor,
instante
maior do amor
em cristais
no meu pensamento
Ele que voltara apenas para restar
ali ouvia cada palavra, com ouvidos de procura misturados na poeira, vagando.
queria te dar a aurora
se despindo na manhã
e orvalhar os caminhos
dos teus gestos pelo dia,
queria te dar momentos
que jamais tivemos
e todos os sonhos
que ainda não sonhei,
queria te dar mais,
tanto mais,
nas palavras usadas
em desbotadas metáforas,
queria te dar muito mais
do meu amor
que não envelhece,
mesmo esperando
só dentro de mim
O poeta não se pertencia, havia a
chusma de demônios impelindo. Acreditava voltar, acreditava ficar, acreditava
amá-la depois de tanto tempo urdindo distâncias. Não conhecia tanto a alma que
amava. Seus pensamentos transpareciam e ouviam os versos.
por não te conhecer tanto
és perfeito dentro de mim,
assim, idealizo, sonho
e sofro a tua ausência
alma que me ama
minha alma também te ama
mas está, ainda, aprisionada
no meu corpo
que todos os dias sente saudades
do teu corpo e da tua alma
alma que me ama
prisioneira como a minha,
vivendo a ilusão de ser só alma,
num corpo que não conheço tanto
mas que é perfeito dentro de mim
alma que me ama
num dia nem vestígios
do meu corpo haverá
um dia quando só alma for,
no espaço infinito das almas,
ainda, doerá a lembrança
de tê-lo tido, sem tê-lo
de tê-lo esquecido, sem esquecê-lo
Era o poeta que só ouvia versos,
só calava as palavras dentro de si. Era o poeta que voltava com o corpo cheio
de demônios e olhava de soslaio a intenção aprisionada na ponta da estrada,
chamando novamente.
Ela olhou para a direção do seu
olhar e enxergou, triste, o lugar de ir, de só ir. E afirmou em lamento.
foi num lampejo de
angústia que Deus,
injusto,
se há,
nos formou um ser só,
deu solitário limite
na enorme ternura
em outro lampejo
permitiu, ainda,
a chama acesa
injusto,
se há,
reluta severo
em de verdade nos criar
embaralha o tempo
na dor que
recende dos nossos corpos
e num gesto de
generosidade
nos dá referências,
pessoas amadas
e nega,
na sua angústia,
que fossem
para nós dois as mesmas
se há,
injusto que é,
quem sabe num dia
de muita melancolia
nos permita alma
e carne se pertencer
se tarde for,
injusto,
se há
permitirá
nos contentarmos
com a lembrança
do que nunca fomos
Despedia-se do poeta e ele se
despedia dela, a estrada o retinha, lugar de ziguezaguear com seus demônios.
Os versos chegavam doloridos de
volta ao ventre, inéditos, sem vida.
Ele restou em litígio com sua
chusma de demônios pela estrada a fora.
Mas ela cantava o definitivo canto.
vais durando em mim sempre
e sempre durarás em mim
pois tenho zelo em pertencer-te
e sinto a cada quadra do tempo
a doce saudade de ter-te
o tempo curva meu corpo
e vais durando,
apura minha sensibilidade
e vais durando
porque sempre
é quando,
estás em mim sempre
Tantos versos chorando nas
palavras não ditas, só dentro, palavras tristes. Lágrimas que salgavam a boca
dos demônios, que cantavam em coro pelo caminho, mesmo quando calavam dentro do
poeta sem versos.
a tristeza
escorria no olhar
não escutavas
nada ao teu redor
a sinfonia do entardecer
deslumbrava
colorida
tristeza
escorria dos ouvidos
não vias
nada ao teu redor
a tristeza continha
teu corpo
para não escorrer
pelo chão
como lágrimas
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