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O dia amanhece
No corredor
comprido
ladeando a casa,
nasciam samambaias
entre os tijolos do muro. O musgo formava pequenos tapetes na umidade do chão também de tijolos
– barro antigo,
pobreza antiga e confortável, sobrevindo todos os dias.
Um portão
de ferro e lata com desenhos
entortados pelo tempo
– pintura antiga,
rangido antigo...
saudades...
Primeira lembrança
teria sido o cão
Tuim? O gambá que apareceu uma noite na cumeeira da casa sem
forro e
provocou a maior
confusão? Ou será a primeira
letra
desenhada no colo
da irmã? A bicicleta
emprestada, o joelho
em carne viva e o amarrado de arame com
as marcas do sangue infantil?
- “o que
foi isso menino” - na memória da audição... tempos, tempos aqueles...
O pensamento
vaga por antiguidades. Um cheiro de fartura, um gosto de quitutes temperados
de simplicidade.
A falsidade
na igreja aos
domingos
espantando meu
olhar menino.
O pecado
espalhado em volta da vida
- sabia quão
falso, hoje sei que sabia... Era tão frágil tudo o que via. Tantas obrigações... Dois
anjos
segurando a toalha
de linho para minha inocência
ser ferida
na primeira comunhão.
A fé, o pão doce em
formado de jacaré - surpresa lúdica para os olhos.
Tão estranho, o amigo com o nome
de um comunista discriminado na escola pedindo para ser
chamado pelo apelido.
O calor
do corpo da colega produzindo todas as
sensações
– matemática bem
aprendida - equação
da temperatura
com o cheiro, elevando a potencia
do olhar quase
somando ao gosto
da boca ávida e das mãos desnorteadas.
- momento
sublime e breve capaz de minúcias, capaz de tanta vida.
Os iguais
e os desiguais
percebidos na dependência
visceral que
tem uns dos outros.
O terno
conseguido emprestado para
que o colega não faltasse à formatura.
- festa vestida de gratidão.
Coisas aprendidas sem
querer, sem
sentir. Depositadas dentro, fermentando, destiladas aos poucos em
modos e percepções daqueles todos dias.
A mesa
de jogo e um lugar cativo
para olhar
a crença dos homens nas possibilidades,
na ousadia, no jeito de achar o tempo
de recuar, de avançar. Pessoas
temperadas nas faces
dando um ar de procura no sentido imprevisto de cada jogada.
Tantos jogadores, uns se
equilibrando na sensatez
da própria necessidade, outros esbanjando insensatez em cada rodada, mas todos
ali
procurando, se perdendo, se encontrando na sorte ou
no azar.
A tosse
ressoava na noite
da casa sem forro e dava a certeza de madrugada acabando. Uma sensação de imensidão se punha entre
os ruídos familiares e a intuição infantil de que
o limite do mundo, do vasto, estava dentro de cada um.
Sou o menino
daquele dia até hoje só
que fazendo o
caminho
inverso. Não
tenho sonhos me frequentando mais.
Alguns vivi, outros
se perderam no meu
querer, nem
foram perseguidos ou
talvez não tenha sabido descobri-los e
conquistá-los no seu tempo.
Resto velho
e menino ao mesmo tempo, engasgado em alguns
espaços. É por isso que
tento me lembrar de tantas coisas. Espasmos da solidão tentando desengasgar,
tirar a trava e redimir
alguma coisa que não sei exatamente o que é, quando foi.
A goiabeira,
o pessegueiro,
a jabuticabeira e a horta de onde tirei o punhado de terra
como na
historia de um
maior que resvalou de um livro ou
de uma conversa, não sei - queria ter sua terra
sempre perto de si - fiz o mesmo, como se adivinhasse nunca voltar.
Impudente, a ereção
saltava fora
do pijama, meu pensamento
vagava impreciso, libertário...
A vitrola
de corda, a caixa de agulhas cobiçada por todos
da casa, música perdida no tempo
da memória, música encontrada no tempo da memória.
Um velho aparentado
chegando, estranho
e risonho – palhaço de circo,
embebedado de estradas,
risos e
velhice.
A charrete
pronta para empinar
com o peso da família - dia de circo, dia do improvável, do inusitado semear
possibilidades. Um
tombo do trapézio - o médico socorrendo a moça e o palhaço socorrendo o espetáculo - e tudo ficou bem, o parente
e a trapezista
ainda moram nas imediações
da minha lembrança e de alguma dor.
Não dá para recordar tantas coisas
que a
alimentam e que
a negam.
Pensar, lembrar
guardados, tentar alinhá-los como roteiro,
descobrir quem
de fato fui ou sou, ou se tudo não
passa dessa tentativa diária e impertinente de apurar
o que passou para esperar
o que virá dentro da morte.
O cheiro
do cobertor marrom. A finca na terra úmida. O velho rádio
de válvulas. As poucas roupas e o único sapato,
bastantes, mas transformados em insuficientes pelas vaidades que ferem apesar de sempre negadas.
Amigos perdidos no caminho
que a intuição comandou, soberana e sem mágica. Retalhos da lembrança na insônia pedindo esse instante.
A cerca, a bola, o arame farpado e o banho roubado no córrego de um quintal desenhado
na pele do meu corpo para
sempre.
A sensação
de energia sem amanhã, de nenhuma responsabilidade, com responsabilidade.
Loucuras cheias de medo e coragem.
A madrugada
nas madrugadas
parecendo pungir qualquer tamanho de liberdade. Um assassinato. E o baile não
parou. Uma morte na rua. E a rua parou. Nenhuma lógica em mim
triscou.
Difícil envelhecer
menino, ver saltar de um limbo a inutilidade ou a utilidade
de momentos tão distantes. Não
enxergar futuro nos de agora.
O dia
amanhece... É mais
um dia sem sonhos,
mais um dia apenas,
para a intuição triturar em volta. Apenas para
continuar morrendo enquanto se vive ou
vivendo enquanto se morre.
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