sexta-feira, 8 de maio de 2009

O POVO DO BELO MONTE XVI - Anabel – Relato de sua convivência com Brás Teodoro.


.

Quando passei duas semanas fazendo um curso fora da cidade, soube da falta que lhe fiz. Não que me tivesse dito, mas foi o que senti no dia de minha volta. Ele não demonstrou, exceto pelos olhos; esses sim falavam todas a palavras que eu queria ouvir.

Tínhamos momentos inesquecíveis conversando sobre pessoas e assuntos que eu conhecia pouco. Ele contava muitas histórias; dos Farrapos, dos Cabanos, dos Guararapes, da nossa formação cultural, do movimento nordestino logo após a Semana de Arte Moderna, revelando outro Brasil; contava dos nossos artistas mais importantes... seus amigos. Um dia provoquei o tema Canudos, ele mudou de assunto. Só hoje percebo que nunca falamos de nossa história recente, da ditadura, e de Canudos a não ser superficialmente na segunda vez que o visitei.


Parecia que tinha morrido lá de alguma forma, só hoje entendo. Nunca consegui pesquisar sua vida como um dia imaginei ao me aproximar dele; reconstruir sua infância, os anos de seus melhores sonhos, seus amores... a época da ditadura, sua prisão. Ele se esquivava de falar sobre sua vida de uma maneira curiosa - discorria sobre os quadros que pintara na época, onde deveriam estar, quem os comprara; da infância lembrava desenhos, rabiscos feitos com carvão nas paredes e nada mais.


Nunca mencionava quem cuidava de seus negócios ou qualquer coisa que envolvesse dinheiro. Quando comprei um quadro seu, deixei o cheque em cima da escrivaninha e quando retornei estava no mesmo lugar.

As pessoas sempre pensavam no material que estava colhendo, imaginando que eu pudesse estar escrevendo sua vida, confirmando histórias com o próprio. E não era nada disso. Muito cedo soube nunca aconteceria. Existia alguma coisa muito forte se passando naquela casa, na sua criação e entre nós, e sabia ser eu a testemunha que ele queria junto, naquele fim. Hoje sei que fui.

Muitos dias se passaram sem que eu pudesse entrar. Dia e noite as Bachianas tocavam sem parar. Eu da porta as ouvia misturadas ao choro dele. Triste, muito triste mas intenso e belo; era um esplendor que eu sabia acontecer lá dentro, igual ao dia em que também senti o encantamento de ver uma das telas terminadas.

Os dias se passavam, as noites e madrugadas; o tempo sendo tragado pela música e minha preocupação aumentando, tentando adivinhar alguma enfermidade acontecendo naquele homem que eu amava e nunca vira tomar um remédio que fosse. Sua vitalidade não combinava com a idade. Seu jeito de viver e trabalhar muito menos. Tentava lembrar se tinha comida suficiente, se alguma coisa tinha feito que o aborrecesse. Pensava na música tocando e me acalmava; a agulha da vitrola se desgastava em poucos dias, e ele a trocava, senão como ouvir aquela música a mim proibida?

Incansável, fazia minha peregrinação até a porta da casa todos os dias, em diversos horários, até mesmo de madrugada. Uma atitude quase insana, segundo os meus mais próximos. Um dia, acabei por concordar e passei espaçá-las. A música continuava tocando, mas parei de ouvi-lo chorando lá dentro, o que era um prenúncio de que breve eu poderia entrar. Qual nada! Mais uns dois dias passaram, quando ouvi o chiado da agulha arranhando o disco. Então, me desesperei e resolvi entrar mesmo que lhe desagradasse.

Era um entardecer e o sol entrava pelas janelas num brilho dourado e fraco, a melhor hora do dia, hora maior da luz da vida, dizia ele. O que vi nenhuma palavra pode reproduzir. O que senti foi uma plenitude tão grande que instintivamente troquei a agulha da vitrola e aumentei o volume não me importando se ele gostasse ou não.

A casa estava toda arrumada, nada fora do lugar. Não havia vestígios de nenhum material de trabalho espalhado, nenhuma garrafa vazia, nenhum cinzeiro cheio como era costume ficar pela sala quando ele se isolava. Arrumados estavam os vinte e oito quadros que diariamente o vira pintar e ficavam num canto esperando o acabamento e a assinatura.

Ali estavam prontos em meio à combinação da luz e da música, exalando energia e uma tristeza infinita. Pus-me em prantos, nunca havia visto nem sentido nada igual; uma melancolia traspassando meu corpo me enchendo de saudade. A tristeza parecia estar em todo lugar, meus olhos não conseguiam desgrudar daqueles rostos, as expressões pareciam se misturar, o mais profundo da terra, da cor de terra, como entalhes na madeira mais nobre; era o barro-papel que ele preparava servindo à vida que meu olhar úmido contemplava.

Procurei por ele pela casa, queria pertencer-lhe de qualquer maneira. Naquele momento, uma intensidade de amor me possuía - era totalmente dele – e o que mais queria era lhe dar aquele momento, em que todas as sensações do corpo e da alma estavam na mais absoluta harmonia no meu coração.

Quando o procurava encontrei a espátula com a qual trabalhava em cima de uma pilha de folhas de papel ao lado da máquina de escrever, com meu nome na primeira folha e, na segunda, o esboço de um enterro sertanejo como os muitos que ele pintou na vida.

Ali estavam os versos unindo o que lhe contei da minha vida, as experiências, o que senti do amor antes de conhecê-lo, entremeado com nosso convívio e com o seu sentimento.

Li os poemas pausadamente e, no mesmo ritmo, sentia a sala se encher de abandono. Li e reli, aos prantos, muitas vezes, esperando que ele chegasse de algum lugar. Agora entendia o quanto tinha de intenso e vazio; quanta afirmação e negação juntas.

Fazia na poesia de seu amor sentido, uma forma de morte lenta, uma parte minha doada enlaçando e esquartejando meus amores e os seus, juntos, ao tamanho dos nossos desejos. Na verdade só descobriria o significado de tudo depois, mas já sentia o enlevo daquelas palavras nos juntando para sempre no passado, presente e futuro.

Sentia o abandono doendo por dentro e por alguma intuição que não sei explicar, saí correndo para buscar minha máquina fotográfica. Ao voltar encontrei a mesma luz do entardecer dentro da sala, parecia iluminada para as fotografias que intui fazer. Só aí percebi que nenhum estava assinado e entendi a sua essencialidade e tudo que o acontecera. Um anunciado deslumbrante. Nos tons, uma quase ausência de luz era a luz.

O relato de seus últimos dias só encontrei na manhã seguinte, quando voltei na esperança de encontrá-lo. Estavam no mesmo lugar que os poemas. Levei para ler pensando em deixá-lo à vontade. Mal cheguei em casa e soube da notícia. Um enorme incêndio estava destruindo a casa do pintor Brás Teodoro.

Quando lá cheguei só havia escombros e fumaça. Nenhum corpo foi achado; os bombeiros reviraram tudo e nada foi encontrado a não ser sua espátula que conservo comigo até hoje.

Umas horas ficamos na esperança de que ele estivesse fora e fosse chegar a qualquer momento. Para mim, esse sentimento dura até hoje, mesmo depois de ter lido o que ele me deixou por derradeiro e entendido sua poesia e seu amor.

Na memória e nos meus olhos ficaram Brás Teodoro e o povo do Belo Monte. As fotografias e os poemas, nunca mostrei a ninguém.

Tudo isso ainda vive no meu coração com a mesma intensidade nesse silêncio, demais.


Nenhum comentário:

Postar um comentário