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SERTÃO D'ÁGUA
Marcos Quinan
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Capa
Biratan Porto
Fotografia e Preparação
Roseli de Assunção Naves
Revisão
Conceição Elarrat
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Para
Eudes Fraga
e
Nilson Chaves
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Agradeço a Terezinha Lima, Antonio, Hugo, Raimunda e Elizabeth da Biblioteca Pública Arthur Vianna; a Doralice Romeiro do Departamento de Informação e Documentação do Museu Paraense Emílio Goeldi; a Edyr Augusto Proença, Conceição Elarrat, Ubiratan Porto, Vicente Salles e Paulo César Pinheiro
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nascer Zé do Tucano
nascer Sabá do Talho
um pouco em cada nasci
qual, de cada Brasil
a cortina de miriti
descobre o maior pedaço
é o traço que deixo aqui
MQ
nascer Sabá do Talho
um pouco em cada nasci
qual, de cada Brasil
a cortina de miriti
descobre o maior pedaço
é o traço que deixo aqui
MQ
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"toda veiz qui vô cantá
o canto de amarração
me dá um pirtucho na guela
e um nó no coração"
Elomar
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"grande é grande
é os meus desejar
jito é os prazos que a vida dá"
Walter Freitas
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Sabá do Talho
A cabeça era um oco desde quando acordou. A boca amargava seca com uma sede que a água da moringa não saciava. O corpo parecia não estar naquela cama, exceto pela dor persistindo nas costas acompanhando cada mudança de posição. Ouvia as vozes sem saber onde estava, quem era, quem falava em volta. Aquele nome estranho. Quase uma catalepsia...? A atenção não firmava no que ouvia - herói de guerra...? Tinha fome; um cheiro estranho de urina e asseio se misturavam ao rosto daquelas pessoas olhando, apalpando, conversando baixo. Sentia um novo desfalecimento, não conseguia se mexer ou falar nenhuma palavra. Os pensamentos sumiam de repente do mesmo jeito que apareciam. Ficava olhando as pessoas de branco em volta sem saber quem eram. Onde estava? Perguntava com os olhos.
A cabeça era um oco desde quando acordou. A boca amargava seca com uma sede que a água da moringa não saciava. O corpo parecia não estar naquela cama, exceto pela dor persistindo nas costas acompanhando cada mudança de posição. Ouvia as vozes sem saber onde estava, quem era, quem falava em volta. Aquele nome estranho. Quase uma catalepsia...? A atenção não firmava no que ouvia - herói de guerra...? Tinha fome; um cheiro estranho de urina e asseio se misturavam ao rosto daquelas pessoas olhando, apalpando, conversando baixo. Sentia um novo desfalecimento, não conseguia se mexer ou falar nenhuma palavra. Os pensamentos sumiam de repente do mesmo jeito que apareciam. Ficava olhando as pessoas de branco em volta sem saber quem eram. Onde estava? Perguntava com os olhos.
Queria se lembrar de tanta coisa, o que tinha acontecido? Passava a mão pelo rosto enquanto se via na vidraça da janela. Queria se lembrar da sua vida, qualquer coisa antes daquele hospital. Não entendia o que lhe falavam... chamava-se Sebastião...? Aquelas pessoas pareciam tão grandes em volta da cama! Só tinha forças para o olhar assustado, depois era aquela fraqueza persistindo, tomando conta, fintando.
Foram os primeiros dias. O torpor foi se abrandando, a tonteira passando até conseguir entender o que falavam a sua volta. Aprendeu a tomar sozinho a sopa diária, a se movimentar na cama, a ensaiar os primeiros passos sem a ajuda do enfermeiro.
- Teu nome é Sebastião Jerônimo Domêncio, nasceste em Muaná, no dia 24 de março de 1878. Foste ferido em combate, és um herói de guerra com medalha e honras. Faz quase um ano que estás nesta cama, inconsciente - dizia o tenente médico - quando despertaste, ainda demorou por tempo atordoado, agora estás bem.
O que sabia foi no ouvir contar pelas pessoas da brigada que o visitavam e pelo tenente médico Dalberto nos meses que ainda ficou lá estiolado. Os músculos não obedeciam, o torpor parecia lhe tirar um simples movimento qualquer. O tempo lhe roubara as lembranças. Quem o visitava contava coisas que nem imaginaria ter vivido: a vida no quartel, o embarque no vapor, o trem na Bahia, seus amigos mais próximos, todos mortos naquele ataque. As visitas foram rareando apesar da insistência do tenente médico para que os companheiros de farda tentassem fazê-lo se lembrar de alguma coisa.
Reformado com honras e soldo de cabo, quando saiu do hospital não sabia pra onde ir até lhe indicarem uma pensão no Reduto onde passou a morar num quarto dos fundos. Tomava banhos de casca de andiroba, passava o óleo que Zinhá, dona da pensão, preparava. Ficava sem fazer nada, acabrunhado, o dia todo, mais pelo que não se lembrava do que pelas cicatrizes que marcavam seu rosto até o pescoço. Lá que avezou com o espanto que provocava e com o apelido que aquela cicatriz trouxe.
Raras vezes saía da pensão onde viveu quase recluso aqueles tempos. Sua aparência causava repulsa em quem o via pela primeira vez. A cicatriz do estilhaço no rosto e as marcas da queimadura sempre eram motivo de curiosidade das pessoas, e Sabá não gostava que o olhassem daquele jeito e muito menos de falar no assunto.
Ajudava Zinhá com a água do poço, a lenha e algum serviço miúdo. Gostava de descobrir saber fazer alguma coisa não lembrada; gostava do quintal sombreado, do carinho de Zinhá tratando-o como um filho que nunca tivera. Passava os dias tentando aprender mais e mais, sentindo o corpo cada dia se fortalecer. Sempre num canto, observando calado, com um jeito de ausente que todos os hóspedes da pensão acabaram por se acostumar. Zinhá lhe dizia que ali ia lembrar tudo que tinha esquecido. Ela se esforçava em ensinar coisas como se ele fosse uma criança.
Numa tarde, quase noite, sentiu o membro enrijecer e apontar para o corpo da moça que molhava os jasmineiros no quintal vizinho ao da pensão. Ele a tomou ali mesmo aprendendo a sabedoria do corpo dela. Dotéia ensinou-o a lidar com o prazer, seus segredos de mulher mais escondidos. Foram tempos de lascívia comandando Sabá. Encontravam-se sempre no começo da noite antes dela ir trabalhar na pensão de quartos onde ganhava a vida. Até a mudança de Dotéia pra Vigia foi a mulher com quem conviveu e de quem sempre se lembrava.
Na pensão conheceu Manel da Coroa, dono de freteira, quem lhe ajudou a criar coragem e andar pelos lados de Muaná à procura de algum parente que não sabia ter. A única referência era o lugar onde nasceu, nos apontamentos sobre sua pessoa no quartel. Com Manel andou pelo interior de Muaná em muitas idas e vindas malogradas. Consultou o cartório do seu Petrônio, perguntou pelo nome do pai e da mãe aos mais antigos. Nada esclareceu. Parecia que ele nunca tinha existido. Seu modo calado foi predominando até desistir de procurar sua vida esquecida.
- No leito seco do Vaza-Barris é que tu foste encontrado quando os corpos eram recolhidos. Dois soldados se fingiam de mortos. Um desses traidores que quase desonraram nossa tropa foi quem viu que estavas vivo ainda. Vinhas sendo arrastado pelo soldado Fibrino, que levou uma carga na barriga e morreu ali mesmo sem socorro.
- Quando o Planeta atracou no porto, a cidade inteira estava esperando. Tu foste o primeiro a desembarcar, estavas muito mal, recebeste até a extrema-unção lá na Bahia, foste levado direto pro hospital, muito enfermo. Mas teu nome foi mencionado em todos os discursos. Quem recebeu a medalha com a promoção foi o soldado Alvino te representando, o mesmo que tu salvou.
Ouvia como se fosse a história de outra pessoa, nenhuma pergunta fazia. Olhava a medalha calado, sem pensamento, alheio ao esforço do tenente médico.
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continua...
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Acho esse livro muito especial. Talvez seja pq foi o primeiro que eu li (de todos os seus.
ResponderExcluirObrigado Edilene,
ResponderExcluirEle mais se parece com o roteiro de um filme. Quem sabe um dia, né!
Te abraço.