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continuação...
Entrou para a equipagem do Purus, vapor que fazia a rota até Manaus, como foguista. Quando se apresentou, o comandante lhe bateu continência com respeito, apresentou toda a tripulação e designou Rapinha e Adelmo como seus ajudantes. Foi o único momento que se sentiu de verdade um herói.
Era uma vida dura, cheia de sobressaltos, mas também de alegrias. Os bancos de areia, os troncos escondidos na lâmina d’água e a falta de lenha eram a preocupação diária de todos. Os dois ajudantes, experientes, no começo meio ressabiados, logo começaram a admirar Sabá pela maneira como eram comandados e pela simplicidade dele em perguntar o que ainda não sabia.
Sabá foi dominando o ofício como se a vida toda tivesse trabalhado ali, a roda motora girando, o sibilo do vapor nem prestava incômodo, era rigoroso com os ajudantes, tolerava suas brincadeiras com um jeito cúmplice, mas reservado.
A cada parada do Purus, ia conhecendo mais o modo de não deixar faltar lenha, o povo e os lugares. Sabia agradar a todos, conseguia fazer lenha até debaixo das chuvas de inverno, gostava de se embrenhar pelo mato, conhecer raízes, ervas, ver a serventia de tudo, foi virando um bom negociante de peles, mel, cacau, fumo e farinha.
- Teus parentes, tua família, por mais esforços que o comando da Brigada fez, não conseguiu encontrar. Durante o tempo que ficaste inconsciente, procuramos mas só quem te conhecia eram as pessoas que tu conviveu no quartel. Até uma moça que vias perto do Curro veio de visita mas afirmou que nunca tu falaste da família.
Lembrar, só lembrava de quando acordou já em cama de hospital. Ouvia contar pelo tenente médico, como puxou o soldado Alvino bem na hora que ele ia saindo do beco com a bandeira pra hastear na praça.
- Teu ferimento foi um estilhaço da bala do canhão que atingiria o soldado se não tivesse sido puxado com força pra trás. Ferido pela explosão no rosto e por uma bala perdida nas costas, o fogo queimou teus cabelos quando ficou desacordado até ser retirado, dado como morto e quase enterrado mas, por sorte, mexeste a perna e foste separado pra enfermaria.
O tenente sempre dizia que ele estar vivo era um milagre e que um dia iria lembrar-se de tudo. Esse dia quase desistira de esperar desde que voltou com Manel da Coroa do interior de Muaná. Lembrava era do sono profundo, de ouvir vozes longe, quando despertou e sentiu um gosto ruim na boca, da sede e daquela dor nas escaras formadas no quase um ano de cama. Lembrava era da falta de forças pra se levantar, da fala esquisita que ouvia, e de se olhar no espelho. Foi estranho, não sabia quem era ali refletido. A cicatriz cerzia seu rosto do lado esquerdo não deixando a barba crescer. Viu-se na palidez como se nunca tivesse existido. Lembrava de quando lhe contavam sua história... do tempo que tinha se passado, foi mais estranho ainda.
Dado como são, reformado e promovido, para ele nada disso significava, não se lembrava de ter sido soldado, nem sabia o que fazer na vida começada dali. Indicaram a pensão, levaram-no ao banco, fizeram os papéis para o soldo e mantiveram o tenente Dalberto, durante um tempo, sempre por perto dele, ensinando-o a retomar a vida. O oficial andou com Sabá por toda Belém, nos lugares possíveis de seu passado. Ninguém sabia nada de sua família, só se lembravam dele na Brigada e Sabá não demonstrava conhecer nada do que via. Nenhum logradouro, nenhuma pessoa, nada. Olhava a baía, as embarcações aportadas, o movimento no Ver-o-Peso, indiferente, vazio. Detinha-se perto do vendedor de jasmins, sentia o perfume recendendo... pensava em Dotéia, sua primeira saudade.
No trabalho de foguista do Purus, conseguido na ajuda do tenente Dalberto, conheceu a linha toda, cada trapiche, cada ponto de lenha. Gostava do serviço no calor da caldeira, de andar pelo convés, dos ajudantes, de falar com os caboclos daqueles pontos mais escondidos. Gente que lidava com a juta, talhando seringa ou tirando lenha. Na sua primeira viagem encontrou no trapiche de Óbidos um guarda-livros que tinha vindo de muito longe e ficava olhando o rio e dizendo: – é um sertão d’água esse lugar... Sabá gostou tanto daquele modo dele falar: “sertão d’água... sertão d’água... sertão d’água”...
Foi também nessa primeira viagem que conheceu Maria Pipira exibindo os seios fartos num vestido de gorgorão azul moqueando a piramutaba e servindo aos passageiros e ao comandante Fontenele, enquanto o Purus aguardava a estiva. Ofereceu de longe a cuia, chamando. Ele foi, ela gostou, chamou pros fundos. Na rede se tiveram a primeira vez, daquele dia em diante virou rabicho.
Na baía de Aramanaí, a vez primeira que viu os tapuios em muitas montarias ladear o Purus com o corpo pintado de jenipapo e urucu, ajaezado de penas, gritando ritmado. Imaginou guerra à-toa, era festa deles. Adelmo riu de Sabá enquanto, moldava a balata no formato do macaco.
Rapinha era nascido na Jaroca mas falava que tinha sido criado na Ponta do Jariúba trabalhando barro. Adelmo ria: - por isso os tamanhos pés, igual curupira... tal qual... tal qual... Rapinha respondia de pronto: - mas não estremunho quando passo perto da artista, tu, sim. Os dois passavam o dia todo trabalhando e arreliando por qualquer coisa. Sabá gostava daquela alegria.
Na ponta do Jariúba, numa das viagens, os dois filhos de Nelau e Ana Tapuia indo de sapeca na montaria sumiram das vistas. O comandante encostou e foram ajudar a procurar, Sabá e Rapinha passaram o dia e a noite remando, nunca ninguém encontrou os curumins. A mãe dizia baixinho:
- Foi Boiaçu, foi...foi...foi...
Rapinha ficou dias sério, calado como não era de seu costume. Muitas noites passou olhando pro céu estrelado, absorto como se os meninos fossem parentes. Em Sabá o sentimento era outro, talvez por não se lembrar de um pedaço grande da vida, via com naturalidade, como a mãe dos meninos, conformada. Achava que a morte vinha na vida, junto, natural, chegava nos modos, sem alvitre. Mas aprendeu nesse dia a respeitar a sina de Nelau, vivendo inconformado com o espírito dos filhos afogados.
No Pacoval, o Curuá despejava as chuvas da cabeceira, aquele inverno antes do tempo formando uma cortina nas vistas, ali Sabá conheceu como lidar com a fervura do leite da balata, o putirum festivo dos negros ressoando na mata, o batuque embaindo o corpo de quem trabalhava e ela numa dança lúbrica fez sinal e teve Sabá todas as vezes que ele lá parou. Era o lugar de que mais gostava.
Aprendeu vendo o sofrimento daquela gente nas mãos dos aviadores, as contas feitas para um lado só. Conheceu Curiboque na larga do Tapajós, moreno vindo do Curiaú, no Amapá, sempre migando tabaco, humilde, conversando manso e disposto a ajudar numa demanda de lenha. Chegou ali com a roupa do corpo, lidando com o que aparecesse. Com o tempo ficou na seringa. Em pouco já era toqueiro e aviava muitos companheiros. Sabá, a cada viagem do Purus, via o progresso dele aparecer mais e mais sem que Curiboque perdesse o jeito simples, sempre fazendo o cigarro, sorrindo. Foi com ele que Sabá mais negociou naqueles anos, entregava-lhe a farinha na troca pelas peles e aprendia cada vez mais. Curiboque viveu com a tapuia os anos que coube naquela beira, iniciou Sabá no cacau e na castanha, completava a carga, dizia ele, uma saca aqui, outra acolá.
Um dia, foi achado morto com um balaço e a cabeça esmigalhada de borduna. Ela com os filhos pra criar, nunca mais ninguém viu. No barracão nada restou e Sabá amargou o primeiro prejuízo sem as peles que tinha pra descer. Dessorado teve que começar tudo de novo.
O rebojo parecia uma escama de peixe que o luar prateava as pontas. Na proa, o pensamento o consumia, numa voragem, tentava lembrar de alguém, um rosto. Da mãe, um gesto dela que fosse, adiantava ficar perguntando até hoje onde passasse. Lembrava de Zinhá lhe esfregando óleo nas cicatrizes, sentia saudades dela, de Dotéia, da pensão; tanto tempo sem ir lá... pensava no tenente, homem bom, sempre pedindo notícias suas a Manel da Coroa. O pensamento viajava mas nunca chegava na guerra, no lugar onde nasceu. Nem depois de ter ido lá, procurando por meses e meses. Nem pai, nem mãe, aqueles olhares de cima em baixo – cunheço tu não, meu mano... Rapinha tirou Sabá dos pensamentos com a febre que finou Adelmo dois dias depois.- a vida viveu nele, mano - falou Sabá baixinho na hora do enterro no Furo do Juruti onde o Purus encostou.
Junto com o que recebia como cabo reformado, o dinheiro ganho nas viagens rendia ainda mais com os negócios feitos na tolerância do capitão. Sabá foi tendo situação de conhecimento por onde passasse o Purus, o comandante do vapor o admirava pela rapidez com que resolvia os problemas, pelo seu jeito de tratar a todos e, principalmente, pela capacidade que tinha de negociar com os ribeirinhos quando tinha que juntar turma pra tirar lenha.
Até quando ficaram sete dias parados no Xibuí, no reparo da caldeira, Sabá ficava mais tempo ajudando a fazer farinha do que à toa esperando o conserto. Ali aprendeu a remar de proa, comer turu com farinha grossa, tomar tarubá e cantar. Ali se deitava com a mulher do Nanu quase toda noite; ela vinha remando por trás do vapor para ficar em sua rede até perto de clarear.
O primeiro negócio que fez foi no Curuá. Comprou toda a farinha que tinha no arruado. Conheceu Severo, um cearense que um dia o presenteou com uma lambedeira que nunca tirava da cinta. Lucrou bem aquele dia, com a compra e com o amigo que fez. Aprendeu com ele que o balateiro era muito explorado pelos aviadores, que até a farinha que as mulheres faziam era dada como paga a eles, num preço de dar vergonha. O nordestino explicou os modos e Sabá começou a negociar a produção que encontrava. Onde passava ia limpando o que excedia o do sustento dos caboclos. Aprendeu a trocar por tabaco, sal, algum tecido e charque. Foi fazendo freguesia, pagando preço bom, ficando conhecido e respeitado como negociante.
continua...
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MQ
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sexta-feira, 21 de agosto de 2009
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