sexta-feira, 28 de abril de 2017

quinta-feira, 27 de abril de 2017

Entreatos

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No elenco, eram sete contratados para reproduzir suas vidas em cena.

Personagens: um manipulador, outro que usava a religião para seus logros. O egoísta que também era um covarde. A transgressora convicta que amava um poeta insignificante. Um que acreditava em seu passado e o usava como álibi pra tudo. Outro, mal dissimulava sua arrogância e se dizia muito feliz.

A última não sabia quem era; nua, dançava languidamente, queria somente ser desejada, fotografada e aplaudida.

Entre os atos, a cortina não se fechava, a marcação ficava apenas num piscar de luzes. Nos três minutos de intervalo, sem nenhuma caracterização, uma pessoa entrava no palco, mudava o cenário, limpava cada canto com um espanador, parecendo querer tirar qualquer vestígio de vida.

Era o único que estava representando.


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quarta-feira, 26 de abril de 2017

terça-feira, 25 de abril de 2017

Sensações

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Não queria saber de mais nada e não percebia que a ponta dos dedos começava a se achatar, as unhas entravam na carne.
Os olhos iam perdendo o eixo do movimento normal, a pele murchando. Na boca, os lábios se repuxavam para dentro; no nariz, a deformidade adquiria um tom avermelhado e o conjunto produzia mal-estar em quem visse.
Sentia o cheiro, a textura da pele, a maciez dos grandes lábios; o pensamento a tinha inteira nas sensações, amava e a queria. Amava e a tinha, amava e a perdia.
Sentia dor, muita dor; a ereção rasgava suas entranhas. Assim eram seus dias e noites; não conseguia esquecê-la, vivia das lembranças e nem tentava confinar sua loucura.
Parecia um jogo, uma execução que ele, o carrasco, determinava o delírio.
Esquizofrenia, lapsos de memória e muitas esquisitices viviam nele. Na verdade o que queria, no seu desvario, era se matar sem matá-la dentro de si.
 
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segunda-feira, 24 de abril de 2017

quinta-feira, 20 de abril de 2017

Rebelião


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Na memória continha o registro de todas as sensações; ao circular, espalhava o que absorvera nos sentidos, célula por célula.

Corpo e alma contidos no líquido viscoso e impregnados de lembranças, sentimentos e saudades transitando por todos os lugares, sustentando o ser imerso em sua intensidade.

Quando fizeram a transfusão, o sangue sintético que recebeu não tinha memória. Precisou ser tanto que as mais insignificantes partes do corpo foram se rebelando e deixando de funcionar aos poucos.

O coração, último rebelde, parou abraçado aos pequenos vestígios de sua alma desfeita no ar e levada pelo vento.

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quarta-feira, 19 de abril de 2017

Valsa Verso

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terça-feira, 18 de abril de 2017

Fio de tempo

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Todas as metáforas conduziam suas histórias para se tocarem; o olhar de um já tinha o outro dentro, desde quando se conheceram. 

 Hesitavam, mas a atração era verdadeira, era de verdade o cuidado que tiveram. Vinham de lonjuras e entregas sentindo suas realidades solitariamente. 


 Precisavam-se e se pertenceram. ...


 As mãos, o silêncio, o beijo; a coragem e o medo conjugando a excitação, explodindo no querer inteiro. Um viço vinha misturado ao desejo, perfumando as horas.


 Entregaram-se num fio de tempo estendido imperceptivelmente entre a realidade e o sonho. 


 E ficaram em silêncio, um dentro do outro, tentando de verdade se pertencer antes que alguma saudade acordasse o momento.


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segunda-feira, 17 de abril de 2017

Cacimba

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sábado, 15 de abril de 2017

Último encontro


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A revelação não o surpreendeu. Suspeitava desde muito tempo. Na infância, na juventude e agora ali, ouvindo.

Sempre aquela coisa estranha. Espécie de comichão no corpo, um pensamento saliente tomando conta dos sentidos. A atenção redobrava. O raciocínio formulado com muita rapidez, quase aviltava suas interlocutoras.

Ela era bela e sofisticada. Curvava o olhar enquanto falava parecendo querer, confrontada com alguma razão, ser interrompida. Ele não evitava a conversa, disfarçava, não contracenava, ouvia, só ouvia.

A revelação veio entre a intenção das palavras. Claro como aquela tarde quente, estranha como as probabilidades do seu corpo. Ele era um demônio...

Sim, um demônio. Sentia, sentia ser.

Foi como um rastilho de pólvora se acendendo. Seu pensamento correu o passado todo. Era mesmo, lembrava-se de cada momento, de cada transmudação ao longo da vida.

Queria rir, gargalhar, mas se conteve. Impassível, ouviu como uma transgressão confessada, como um desejo de remissão impresso no tom da voz. Viu nos olhos molhados nostalgia, mas nenhum arrependimento.

O esforço que ela fazia para inventar uma história de culpa já não tinha importância. Era só um espectador. A beleza ele já havia roubado. O arbítrio da fé não o interessava. Apenas ergueu o copo.

Em silêncio, brindou ao pecado que a colocara inteira no seu inferno particular.

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