sábado, 30 de novembro de 2013

O COBRA - MQ

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sexta-feira, 29 de novembro de 2013

ACORDE BRASILEIRO INFORMA - RUY GODINHO - ENTÃO, FOI ASSIM?

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RUY GODINHO - RODA DE CHORO

 
 
 
 
ESPECIAL NAIPES II


O RODA DE CHORO deste sábado vai ser especial. Durante todo o programa, vamos falar sobre os naipes de uma orquestra ou de uma formação instrumental: naipes de percussão (metais e madeira), naipes de sopros (metais e madeira), naipes de cordas, naipes de vozes, etc..

A produção convidou o maestro, professor, saxofonista e compositor Fernando Machado, que nos concedeu uma simples, porém esclarecedora aula sobre o assunto.

 
 

Produção e apresentação: Ruy Godinho
 
 
Transmitido pela Rádio Câmara FM 96,9 Mhz - Sábado 12h [Brasília – DF] (www.radio.camara.gov.br)
 
Retransmitido por 230 rádios parceiras 
 
 
 
 
 
 

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

MONTARIAS - MQ

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quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Celeste - MQ



Nenhuma lágrima verteu, apenas a sensação de todas elas dentro de si. Não demonstrava o sofrimento, gemendo no corpo junto com o cansaço dos últimos dias na cabeceira da cama. Dor tecida com a ausência que foi se consumando pela madrugada até o passar de Rosário.  

O banho solitário, possuído pela ausência, a escolha do vestido que havia de ser belo e discreto como o corpo macio e quente que fora seu, só seu, durante toda a vida.

Um silêncio maculado pelo Corpo de Pedestres desfazendo o ajuntamento na porta da frente, as frases distantes:

 

-         Dispersar... 

 

-         É um veloro.

 

As mãos seguravam o cabo do espelho e o pente sobre as coxas, como se estivessem mortos e insepultos, sentia um calor diferente tocando naqueles objetos.

No mesmo dia, embaixo da janela do quarto, cavou com suas próprias mãos e enterrou o espelho e o pente sob olhares espantados de todos da casa. Em silêncio, esperou duas lágrimas caírem, secando na terra, passou com suavidade as costas da mão direita no lugar e chorou outras mais.  

O vestido preto com mangas compridas e gola alta cobria seu corpo todo. Na cabeça, a mantilha preta com as pontas perpassadas e presas por um nó por cima da cabeça, cobrindo as orelhas lhe dava um ar de tristeza que fazia chorar pelos cantos os serviçais espantados com aquela tristeza.

Nas mãos luvas pretas quase transparentes, mantinha o anel no dedo da esquerda envolto em fita fina de seda, os grandes brincos encapados com o mesmo tecido preto, luto por todos os objetos do quarto conservado fechado, um tom de ausência, proibindo a luz do dia.

Passava dias e noites sentada na marquesa sem se alimentar, entre suspiros murmurando:

 

– Quero morrer também...

 

Do quarto nunca mais saíra, recebia as poucas visitas ali mesmo. Não falava com elas, só se deixava observar, olhando o vazio. O desatino que os da casa e quem a visitava não compreendiam, ia sendo falado por todos, seu corpo  perdendo as carnes, o mal cheiro exalava a falta de asseio. Era triste.         

 O tempo passava e passava seu silêncio. Dera de falar muito lembrando a infância, os pais, a convivência com as notícias de morte, as perseguições dos conhecidos, o surto de bexiga e um muito de coisas, algumas até, que ninguém entendia. Mas continuava recusando comida, dizia:

 

– Onde está, ela não come...

 

Os móveis cobertos de poeira e abandono, o lugar da casa onde ninguém mais entrava, um quarto abafado, sem uma réstia de sol, proibido a todos.

Foi encontrada já em estado de putrefação, sentada com a cabeça reclinada, na mesma marquesa, com o traje de seu luto puído pelo tempo, seu único alimento, a ausência, em restos espalhados nos detalhes da mobília do quarto enlutado.
 
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terça-feira, 26 de novembro de 2013

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

SANTA CLARA - MQ

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domingo, 24 de novembro de 2013

Dourado, Tumida, os filhos, Amélia, Acapoúca, João Mão Cega e padre Demerval - MQ


 
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Aferventando a farinha, Manoel Douro, mais conhecido como Dourado, português de nascimento, brasileiro por vontade sua, mexia a colher de pau desgrudando a rapa do fundo da panela, pensava na demora da marcha, pensava no padre doente.

Tumida preparava os nacos de peixe salgado para a fome de cada um. Ela, cafuza,  filha de  escrava mandê e índio paracanã, sumidos há mais de vinte anos, foi criada por ingleses, abastados comerciantes, na rua do Norte.

Fugida, confusa, vivia com Dourado, dois filhos, nenhum dele, de quem? não sabia dizer, acompanhava-o pelos sítios onde se travavam escaramuças e combates, indo de freguesia em freguesia, de vila em vila. Sempre em armas. Atiradores de pontaria certeira e rápidos no recarrego das armas, auxiliados pelos dois meninos que carregavam o cartuchame. Igual, preocupada em ter se perdido dos outros na retirada dos que iam continuar a luta.

Amélia, escrava parteira, alforriada na bondade do pai do menino que aparou, cantando reza banta, salvando a mãe e a criança, sentada na raiz do pau d’arco, olhava distante com a mão posta na testa do padre que ardia em febre. Além de parteira, conhecia o segredo das raízes e plantas de cura. De benzimentos e rezas. Assistia o padre e esperava qualquer destino fosse.

Cortando o pau preto, Acapoúca, mameluco do Bujaru, mestiçado com gente do Abaribó, cuidava tirar reto. O mais calado de todos, anhoto como cobra antes do bote, de força descomunal, atado em destino e na bruteza a João Mão Cega que olhava as águas receberem os primeiros raios da manhã, desprendendo vapor, como se o sol pudesse esquentá-las.

Foreiro do Acará, o mais chegado aos Vinagres, cabano de primeira hora, valente e preterido sempre do comando de algum grupo, por não ter nunca domínio de si, mas preferido, junto com Acapoúca, por todos em qualquer tipo de luta.

 Seguiam, desde três dias, subindo o Guamá, o casal com os filhos na canoa ligeira, farta de farinha e peixe salgado, quando a chuva forte caiu e buscaram a margem. Mão Cega e Acapoúca vinham do mesmo rumo por dentro da mata procurando os que queriam continuar lutando.

As batidas na samaumeira ecoaram, pancadas ocas perdidas na mata juntaram os dois grupos à raizeira e ao padre, prostrado no chão, ardendo em febre. Padre Demerval, desde o segundo dia de marcha juntos, vinha carregado na rede de varão, cuidado por puçangas e rezas. Revezavam entre remar a pequena canoa carregada próximo à margem e ombrear o varão.  

O dia todo mais a noite foi a espera ao lado do padre, em convulsões até a derradeira. Acapoúca viu Amélia cruzar as mãos do morto no peito, cantando baixinho, chamou os outros. Encomendado na liturgia africana pela negra, enterraram padre Demerval em silêncio.

Vinham fugindo da perseguição que faziam ao padre, desde que ele se opôs ao recrutamento dos meninos do orfanato para o corpo de voluntários, contava Amélia. Ficaram muitos dias nas matas de Nazaré, mas não foram descobertos e saíram a esmo, até a febre o padre sabia para onde ir, mas depois ficaram perdidos, vagando.      

Dourado propunha ficarem juntos, formar força própria, juntar os desgarrados e seguir pro Tapajós. Sabia de muitos que pensavam assim, contava mais de cem.

João Mão Cega nem chegou a dar opinião do que achava, deviam fazer. A bala atingiu o pescoço, caiu sem vida. O estralejar começou intenso, estavam cercados e sendo caçados como animais.

Foi uma luta breve e desigual. Eram mais de quarenta homens fardados e fortemente armados que deixaram a morte espalhada nos corpos nus e mutilados em volta da cova rasa com o religioso restando, desenterrado, sem as orelhas.       

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sábado, 23 de novembro de 2013

CASCA - MQ

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sexta-feira, 22 de novembro de 2013

RUY GODINHO - RODA DE CHORO

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ESPECIAL DUOS II

O programa Roda de Choro deste sábado traz uma série de ricos encontros em duos, que resultaram em gravação de CDs de alta qualidade:

No 1º bloco o encontro de Joel Nascimento (bandolim) e Fernanda Canaud (piano), do CD Valsas Brasileiras;

No 2º bloco o destaque vai para o duo Daniela Spielmann (saxofone) e Sheila Zagury (teclados), do CD Brasileirinhas;

No 3º bloco o inusitado encontro de Yamandu Costa (violão de sete cordas) e Dominguinhos (sanfona);

No 4º bloco Mário Sève (saxofone) se junta a Marcelo Fagerlande, (cravo), que resultou no CD Bach & Pixinguinha;

E para finalizar o som do CD Dois Irmãos, de Rafael Rabello (violão de sete cordas) e Paulo Moura (clarineta).

 

 
Produção e apresentação: Ruy Godinho
 
 
 Transmitido pela Rádio Câmara FM 96,9 Mhz - Sábado 12h [Brasília – DF] (www.radio.camara.gov.br)
 
Retransmitido por 201 rádios parceiras  
 
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quinta-feira, 21 de novembro de 2013

ACORDE BRASILEIRO INFORMA

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quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Elegia ao primeiro amigo - Vinícius de Moraes


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Seguramente não sou eu
Ou antes: não é o ser que eu sou, sem finalidade e sem história.
É antes uma vontade indizível de te falar docemente
De te lembrar tanta aventura vivida, tanto meandro de ternura
Neste momento de solidão e desmesurado perigo em que me encontro.
Talvez seja o menino que um dia escreveu um soneto para o dia de teus anos
E te confessava um terrível pudor de amar, e que chorava às escondidas
Porque via em muitos dúvidas sobre uma inteligência que ele estimava genial.
Seguramente não é a minha forma.
A forma que uma tarde, na montanha, entrevi, e que me fez tão tristemente temer minha própria poesia.
É apenas um prenúncio do mistério
Um suspiro da morte íntima, ainda não desencantada...
Vim para ser lembrado
Para ser tocado de emoção, para chorar
Vim para ouvir o mar contigo
Como no tempo em que o sonho da mulher nos alucinava, e nós
Encontrávamos força para sorrir à luz fantástica da manhã.
Nossos olhos enegreciam lentamente de dor
Nossos corpos duros e insensíveis
Caminhavam léguas - e éramos o mesmo afeto
Para aquele que, entre nós, ferido de beleza
Aquele de rosto de pedra
De mãos assassinas e corpo hermético de mártir
Nos criava e nos destruía à sombra convulsa do mar.
Pouco importa que tenha passado, e agora
Eu te possa ver subindo e descendo os frios vales
Ou nunca mais irei, eu
Que muita vez neles me perdi para afrontar o medo da treva...
Trazes ao teu braço a companheira dolorosa
A quem te deste como quem se dá ao abismo, e para quem cantas o teu desespero Como um grande pássaro sem ar.
Tão bem te conheço, meu irmão; no entanto
Quem és, amigo, tu que inventaste a angústia
E abrigaste em ti todo o patético?
Não sei o que tenho de te falar assim: sei
Que te amo de uma poderosa ternura que nada pede nem dá
Imediata e silenciosa; sei que poderias morrer
E eu nada diria de grave; decerto
Foi a primavera temporã que desceu sobre o meu quarto de mendigo
Com seu azul de outono, seu cheiro de rosas e de velhos livros...
Pensar-te agora na velha estrada me dá tanta saudade de mim mesmo
Me renova tanta coisa, me traz à lembrança tanto instante vivido:
Tudo isso que vais hoje revelar à tua amiga, e que nós descobrimos numa incomparável aventura
Que é como se me voltasse aos olhos a inocência com que um dia dormi nos braços de uma mulher que queria me matar.
Evidentemente (e eu tenho pudor de dizê-lo)
Quero um bem enorme a vocês dois, acho vocês formidáveis
Fosse tudo para dar em desastre no fim, o que não vejo possível
(Vá lá por conta da necessária gentileza...)
No entanto, delicadamente, me desprenderei da vossa companhia, deixar-me-ei ficar para trás, para trás...
Existo também; de algum lugar
Uma mulher me vê viver; de noite, às vezes
Escuto vozes ermas
Que me chamam para o silêncio.
Sofro
O horror dos espaços
O pânico do infinito
O tédio das beatitudes.
Sinto
Refazerem-se em mim mãos que decepei de meus braços
Que viveram sexos nauseabundos, seios em putrefação.
Ah, meu irmão, muito sofro! de algum lugar, na sombra
Uma mulher me vê viver... - perdi o meio da vida
E o equilíbrio da luz; sou como um pântano ao luar.

Falarei baixo
Para não perturbar tua amiga adormecida
Serei delicado. Sou muito delicado. Morro de delicadeza.
Tudo me merece um olhar. Trago
Nos dedos um constante afago para afagar; na boca
Um constante beijo para beijar; meus olhos
Acarinham sem ver; minha barba é delicada na pele das mulheres.
Mato com delicadeza. Faço chorar delicadamente
E me deleito. Inventei o carinho dos pés; minha palma
Áspera de menino de ilha pousa com delicadeza sobre um corpo de adúltera.
Na verdade, sou um homem de muitas mulheres, e com todas delicado e atento
Se me entediam, abandono-as delicadamente, desprendendo-me delas com uma doçura de água
Se as quero, sou delicadíssimo; tudo em mim
Desprende esse fluido que as envolve de maneira irremissível
Sou um meigo energúmeno. Até hoje só bati numa mulher
Mas com singular delicadeza. Não sou bom
Nem mau: sou delicado. Preciso ser delicado
Porque dentro de mim mora um ser feroz e fratricida
Como um lobo. Se não fosse delicado
Já não seria mais. Ninguém me injuria
Porque sou delicado; também não conheço o dom da injúria.
Meu comércio com os homens é leal e delicado; prezo ao absurdo
A liberdade alheia; não existe
Ser mais delicado que eu; sou um místico da delicadeza
Sou um mártir da delicadeza; sou
Um monstro de delicadeza.

Seguramente não sou eu:
É a tarde, talvez, assim parada
Me impedindo de pensar. Ah, meu amigo
Quisera poder dizer-te tudo; no entanto
Preciso desprender-me de toda lembrança; de algum lugar
Uma mulher me vê viver, que me chama; devo
Segui-Ia, porque tal é o meu destino. Seguirei
Todas as mulheres em meu caminho, de tal forma
Que ela seja, em sua rota, uma dispersão de pegadas
Para o alto, e não me reste de tudo, ao fim
Senão o sentimento desta missão e o consolo de saber
Que fui amante, e que entre a mulher e eu alguma coisa existe
Maior que o amor e a carne, um secreto acordo, uma promessa
De socorro, de compreensão e de fidelidade para a vida.
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terça-feira, 19 de novembro de 2013

ACORDE BRASILEIRO INFORMA

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segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Cumará e Nheiú - MQ



Remava bem, fosse de proeiro ou na remadura. Saber vinha dos tempos dos antigos, passando o jeito de olhar as maretas, desvendando marés, rasuras e funduras, passando o conhecimento das águas e do enrediço de furos e igapós.

Cumará ia com Nheiú. Na empanada, os destribados levavam farinha, cutite, muitas varas de capim flecha, e uma enrodilhada trança de caroá.

Remavam, entrando na larga do Carnapijó, o sol, ressumando por trás do mato, punha o dia em volta e deixava ver o patacho fundeado, rente à margem, quase  embocando no igapó.

Cumará, do vê-lo, fez remo contra, ficando fora das vistas, no entremeio da ramagem. Foram muito recomendados para evitar qualquer camaradagem, mesmo de conhecidos, sabia seu Tomé das Letras, dono da farinha, da tomadia que faziam: do Carnapijó até Tatuoca, não deixando ninguém passar com nada que fosse de comer e em muitos casos apresando até os remeiros, que podiam escolher entre se alistar como voluntários ou serem presos.

A maré estava virando em vazante, desfavorecendo ainda mais o patacho encalhado, sem força de vento que o tirasse. Cumatá, quando percebeu a vaza prendendo o navio que pensou fundeado, fez sinal pra Nheiú, comandando sair remando na larga e entrar no igapó, cortando a face do costeado, pelo mucruará que sabia, ficava emprenhado na vazão.

Em manobra rápida, bordejaram quase riscando a madeira do casco, em remado silente e ligeiro, pondo surpresa no convés que reagiu só com muita gritaria, sem nenhum disparo. Embrenharam com outra manobra pelo caminho d’água, varando ilesos no caudal jusante.

Margearam, enquanto a sombra do mato pôde encobri-los, fazendo render as remadas até o sol dar sombra de quarto de dia, quando entraram pelo primeiro igarapé e ficaram esperando a noite.

Esta veio; juntando negrume e sacolejo de vaga, no rumo tortuoso que Cumatá traçou para evitar os navios fundeados e chegar à boca do Piri.

Mas tal não aconteceu, a canhoneira saiu de trás do brigue, numa manobra rápida, lançou o arpéu e pôs-se casco a casco, acendendo o lume das lanternas. Descobertos, farinha e canoa, Cumatá e Nheiú foram levados para Tatuoca e incorporados à frota, à despensa e ao corpo de voluntários.

Dali nunca saíram, a primeira ferida que Nheiú coçou, apareceu depois de muitos dias de tosse e febre, viraram manchas e pústulas por todo corpo. Em Cumatá, as pápulas chegaram junto com a prostração da febre. Quiseram fugir, mas as forças faltaram, as feridas roubavam a vida vagarosamente. 

Os dois foram separados junto com um sem número de outros infectados. A correria era grande, a febre pútrida não poupava ninguém, nem os principais, as autoridades, os estrangeiros; homens, mulheres e crianças, fazendo mais vítimas entre os presos nos porões da corveta Defensora e as forças militares.

Os escravos cavando valas e enterrando corpos com as mãos embrulhadas e o pano cobrindo o nariz e a boca, os objetos sendo queimados em grandes fogueiras, foi a última visão de Cumatá.

Nheiú durou mais um dia dentro da escuridão com os olhos comidos pela varíola.
 
 
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domingo, 17 de novembro de 2013

POTE DE ÓLEO -MQ

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sábado, 16 de novembro de 2013

João Fandro e Francisco Rugoso - MQ


 

Ajudante ponçador, com a mão suja no esbulho urdido nos dias, João Fandro, funcionário encarregado da impressão dos títulos, separava desadorada quantia para o bolso.

Avaro sabido por todos de sua convivência, possuía escravos comprados em muitas pagas mensais, disfarçando seus atos. Eram só machos, fugidos maltratados pela captura; peças rejeitadas, com cacundas, dentes apontados, sinais de açoite e toda sorte de defeitos. 

A escravaria alugada aparentava se sustentar e sustentar o seu aumento, mas, na verdade, era um negócio sem renda que acobertava o espoliado dos cofres da província.

João Fandro levava a sério o fingimento, parecia o que fingia, brigava pela menor diferença no preço do serviço ou em qualquer negócio, e cuidava dos negros com zelo, muita farinha e peixe seco. Viviam longe de assuadas e feitiçarias, nenhum escravo seu era visto desocupado ou com a roupa molhada. Chamado para, com eles, aumentar uma multidão, levava uma metade parecendo ter só aqueles.

Gastava devagar os títulos que circulavam como moeda, fingia alheamento com as demissões e nomeações, ora o tirando do cargo, ora nomeando para um outro.   

Com o depresso, tantos querendo vender para fugir, o medo dos cabanos dominando a província, ele não acreditando no que os revoltosos pregavam sobre a libertação dos escravos; adquiria todos que lhe surgiam em modalidade de preço conveniente a sua conhecida sovinice. Em poucos dias, comprou mais negros que os mais abastados comprariam em muitos anos, gastando tudo o que tinha. Esperto que era os ofereceu em aluguel, parte ao comandante das armas do governo cabano, e a outra à marinhagem nos navios que lhes opunham.

Francisco Rugoso, seu mais antigo escravo, velho de orelhas cortadas em castigo, carapina de olhar limpo e bom remeiro foi o único que ficou com João Fandro.

Quando iam aos navios, Rugoso sentia vontade de delatar João Fandro aos oficiais, entendia pouco o que se passava mas, os cabanos não cumpriam a promessa de liberdade, então era mais vantagem ser escravo de abastados senhores do que dos foreiros e arrendados. Pensava.

Quando andava pelas ruas, sentia a mesma vontade de falar com os chefes cabanos da esperteza do dono. Ouvia entre os negros e mestiços dizer que estavam organizando o governo da província para depois cumprir as promessas. Pensava em João Fandro contando tudo que via em terra aos oficiais da esquadra, dando detalhes do que se passava. Sentia raiva de não delatar, se misturava aos valentes, ouvindo contar a vitória, era um deles nessa hora.

Uma noite, remando de volta, fez um barulho a mais e recebeu a vergasta no rosto, a raiva o ajudou a decidir, ia denunciar João Fandro aos cabanos. A rapidez dos acontecimentos adiou sua decisão, em poucos dias o governo mudou. Em meio àquela confusão, Rugoso não sabia mais que partido tomar, os cabanos brigando entre si, a esquadra fundeada no largo em alerta, recebendo pessoas fugindo da desordem. Resolveu esperar.

João Fandro não notava no escravo qualquer possibilidade de insubmissão. Para ele, Rugoso era cúmplice devotado e incapaz de sair do seu mando. Achava que os comentários que fazia sobre estar dos dois lados e o tratamento zeloso fosse o suficiente para mantê-lo fiel. Acenava com vida boa, sonhando com a nomeação para a provedoria da fazenda, fosse num governo ou em outro, cortejava e tinha promessas dos dois lados, dizia ao escravo, acreditando fazê-lo lembrar os tempos passados de muita fartura.  

 O dia que Rugoso decidiu e denunciou João Fandro, os cabanos entregaram o governo da província, nem prestaram atenção nas acusações. Rugoso morreu como um desconhecido, pouco tempo depois, fugido e em armas junto com os mais radicais que atacaram e massacraram a Vila de Vigia.

João Fandro perdeu muitos que seguiram o mesmo caminho de Rugoso; foi nomeado funcionário pelo novo presidente da província e manteve o que restou deles no ganho pelas ruas. Nunca entendeu o velho carapina ou fez queixa de nenhum dos fugidos.        

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sexta-feira, 15 de novembro de 2013

RUY GODINHO - RODA DE CHORO

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RODA DE CHORO - SÁBADO - DIA 16.11.13


ESPECIAL JOÃO PEDRO

O RODA DE CHORO deste sábado será especial. Vai dedicar-se integralmente ao talento, à criatividade e ao virtuosismo do acordeonista e compositor paranaense JOÃO PEDRO, nascido em São José dos Pinhais/PR, em 10 de março de 1982.
            Na parte musical, enfocaremos composições dos CDs Acordeom e Novas Cores, lançados em 2009 e 2011, respectivamente.  

 
 
Produção e apresentação: Ruy Godinho
 
 
 Transmitido pela Rádio Câmara FM 96,9 Mhz - Sábado 12h [Brasília – DF] (www.radio.camara.gov.br)
 
Retransmitido por 148 rádios parceiras
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quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Eneu - MQ



Acompanhava presa na pele a titinga. Comendo sem dor, a lepra; sua desdita. 

Por mais de dois anos, vivia num depósito de enfermos que a Santa Casa recusava tratar, o medo de contágio os excluía. Isolados, nas palhoças escondidas, entre moléstias diversas, vestindo muafos, viviam como bichos, mesmo os que tinham pouca manifestação das doenças eram abandonados pelas famílias. As mulheres davam os filhos aos abastados para se recolherem naquele lugar à espera da morte. E ela vinha, quase todos os dias, sem cerimônias, sem tristezas, era um alívio.

Eneu, com os olhos cada dia mais esbugalhados; perdida a condição de esmoleiro por cauda das chagas, vivia naquele mato quase sem as mãos.

Se diferençavam dos animais somente por não se proverem de comida, recebiam restos da Fortaleza da Barra, na bondade não sabiam de quem. Apenas encontravam os alimentos num ponto do mato.

Das terras da fazenda Val-de-Cans, apenas sinais do antes uma cerca, separavam-na das misérias pútridas se misturando. Cuidados apenas no pouco conhecimento que cada um tinha de alguma erva, ilusão enfraquecida todo dia. 

No tempo que ali estava, Eneu nunca tinha visto um médico, aquele era o primeiro. Chegou acompanhado de duas carmelitas, visitando palhoça por palhoça. Daquele dia não ficou sem vê-lo nenhum outro, sequer.

Remédios, roupas, comida e a organização começou a mudar o lugar. Quem chegasse era examinado cuidadosamente e muito poucos ficavam, a maioria voltava medicada ou era encaminhada à Santa Casa.

O médico era um abnegado, em pouco tempo transformou as cabanas isoladas onde viviam sós, sofrendo suas mazelas em pequenas enfermarias onde cada um convivia com quem tinha sua mesma moléstia. A convivência lhes dava conforto, abrandando o que sofriam. A fome não existia mais, se eram restos que ainda comiam, eram agora colocados no jirau, não mais como se fosse comida de porcos esparramada pelo chão.  

Eneu, de onde estava, viu a chegada dos soldados fortemente armados, astuto, escondido no mato, ouviu toda a conversa. Tinham ordens de esparramar todos que ali estavam para que fossem finar os dias espalhando suas moléstias contagiosas pelos cabanos no interior.

A reação do jovem médico foi violenta, disse não permitir, teriam que passar pelo seu cadáver, seus muitos anos de estudo para aprender salvar vidas se impunham contra quem quer que tivesse dado aquela ordem, que o fizessem saber. Nenhum tiro foi disparado, o silêncio foi quebrado apenas pelos passos do médico lhes dando as costas.

Em seu dia, Eneu  pediu para ser levado pra fora. Seus olhos pareciam saltar, do esbugalhado que aumentava, para dentro das árvores copadas, sem as mãos que pudessem apontar, parecia querer fazê-lo com os olhos. Sem nenhum movimento que não fosse esse, exclamou:

 

        Minha mortalha... doutor... vencemos eles.

 

E se foi.  

    
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quarta-feira, 13 de novembro de 2013

CURUÇA =MQ

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terça-feira, 12 de novembro de 2013

Murtinho e Rosina - MQ


 
Os dois se acostumaram a entrar nas casas abandonadas, sorrateiros e silenciosos, parecendo ratos, cada dia escolhiam uma.

 Murtinho, negro cambaio, quando ficava nervoso ou  ao andar, balançava muito os braços, Rosina muito gorda, bochechuda, ria por qualquer coisa. Ambos filhos de escravos brutos, desde pequenos viviam juntos, primeiro no engenho Salvador, ela puxando canga de bois na moenda, ele engarrafando a aguardente destilada. Considerada desde nova fêmea de Murtinho, Rosina fazia por onde, estava sempre perto dele, rindo e fazendo rir.

Arrematados em leilão judicial, por pendência de separação, foram fazer farinha na fazenda Mucucuri, lá trabalharam a mocidade toda, ele na lavoura, ela no poço tirando casca, amassando, ralando mandioca puba e dando curera às criações.

Os novos donos, muito católicos, não aceitavam nenhuma prática africana entre os poucos escravos que tinham. Todos eram batizados e freqüentavam a missa aos domingos. Com o tempo, deram conta da idade já chegada e  oficializaram, na igreja, a união de Murtinho e Rosina.   

Dali só saíram quando a moça Deodora casou com o diplomata e importador francês Philipe D’artang e os recebeu como presente de casamento.

Nunca tinham visto uma cidade grande na vida, a banda de música tocando na frente do Palácio foi o primeiro deslumbramento dos dois que riam como duas crianças, chegando a perturbar a apresentação dos músicos. Andaram pela rua dos Açougueiros, no caminho da casa nova, assombrados com o tanto de gente, mais ainda com o mascarado tocando tambor e fazendo seus anúncios. A sinhá na frente com o marido, se divertiam com a alegria deles.

Foram anos de brandura na vida de Murtinho e Rosina, serviço só o da casa, os donos sem filhos, sinhá vaidosa, ia muito com o marido a festas, recepções e reuniões elegantes, às vezes os deixava sair para ver a banda, maior felicidade não havia.

A política fervilhava em volta do casal, fosse na casa dos donos, na rua ou na conversa de escravos e mestiços, eles alheados, viviam rindo, nem prestavam atenção. Gostavam mesmo era de imitar o jeito de falar e os gestos das pessoas importantes que viam de longe no Largo das Mercês, na missa. O jeito de comer e de andar dos donos.  

Murtinho, apesar do desinteresse, ouvia quando ia buscar, na casa importadora, o da despensa, falar, pelos outros escravos que faziam mercância ambulante, carregadores, entregadores, mensageiros, alugados e até pelos mestiços, o que acontecia, política de uns e de outros – exílios, demissões, alistamentos, anistias, leis do reino, abolição, deserções, roubo de armas. Fingia interesse, contava tudo a Rosina e incorporavam o que ele ouvia nas brincadeiras que faziam imitando os abastados ditando as leis.

Souberam pela gritaria na rua, os cabanos tinham tomado a Província, sinhá andava de um lado para outro, preocupada com o marido que saíra de madrugada, parecendo saber da invasão. A assuada tomava conta das ruas, entre vivas, o povo saudava seus líderes. Murtinho e Rosina custaram entender a seriedade da hora. O saque na casa importadora fez com que fossem parar no convés do brigue Conquista, para estranhamento da escrava - apesar da novidade, tinha medo do balançar nas marolas. Assim que sinhô soube, escreveu ao novo presidente por via do consulado francês. Em menos de um mês, estavam todos de volta, o prejuízo ressarcido e a vida no normal.

Durou pouco tempo a calma nas ruas, Murtinho vinha contando que nada mudara, a conversa era a mesma - prisões, demissões, perseguições e nada da abolição, os poderosos iam voltando, os reinóis continuavam nos principais cargos do governo, muita gente descontente com as brigas entre os cabanos. Sinhá ouvia atenta e preocupada.

A invasão da casa do vice-cônsul francês, ato ilegal, cometido como se houvesse ali uma reunião de conspiradores, pôs outra vez todos no convés do brigue Conquista. Dali viram o bombardeio que os navios em manobra despejaram sobre o casario.

As notícias vindas da terra confirmavam os desentendimentos e brigas entre os cabanos - o presidente, deposto e assassinado, os revoltosos aclamando o comandante das armas como novo governante. O assunto no brigue era a interpelação diplomática que o cônsul faria ao governo assim que chegassem os navios franceses.

O esclarecimento da afronta e o pedido formal de desculpas pelo novo presidente foi aceito. Permitiu a volta à normalidade e o desembarque de todo o corpo diplomático e suas famílias.

A vida de Murtinho e Rosina mudou pouco, continuavam risonhos por qualquer coisa, imitando o cotidiano do navio, como fossem marinheiros, oficiais graduados dando ordens ou as outras pessoas importantes que viram, mas uma pequena mudança tiveram, com a sinhá preocupando-se cada vez mais com os acontecimentos, deixando de sair e não os deixando também. Apenas Murtinho ia à casa importadora buscar encomendas e mantimentos, na volta, contava o que ouvia na rua – iam entregar o governo, ninguém queria deixar as armas, não confiavam nos portugueses, muitas desavenças que só Angelim dava jeito e nada da abolição e da igualdade prometida.

Na cozinha, Rosina ria do jeito de ele imitar o novo presidente nomeado, que viram na missa quando ouviram sinhô contar na sala, do ataque na vila da Vigia e das conseqüências – prisões e perseguições aos cabanos, muita gente fugindo para o interior e para os navios surtos no porto.

A luta não demorou, o ataque foi violento com muitas mortes, saques, algazarras e vinganças. A perseguição aos estrangeiros foi intensa. O descontrole com a morte do ex-presidente Vinagre foi grande, e a transferência do governo para a ilha de Tatuoca provocou muita confusão, quem não fugiu logo nos primeiros dias para os navios, ficou à mercê de violências, que nem o presidente cabano aclamado conseguia controlar.

Uns poucos, na boa vontade do Presidente Angelim, cuja família era mantida reclusa em Tatuoca, conseguiram ainda fugir com a ajuda do bispado, em meio a euforia desmedida dos revoltosos.    

Os escravos levaram, um pouco de cada vez, os pertences necessários até o bispado, passavam despercebidos pelas ruas. No começo da noite, ajudaram os donos a vestir as batinas que o bispo mandou e os acompanharam com archotes de pouco lume até o local do embarque.

Murtinho e Rosina quando se viram sozinhos na casa, entre risos e mesuras tomaram conta como se fossem os senhores, roupas, objetos e adornos serviam para suas imitações e brincadeiras.  Vestiam-se como os senhores e ficavam pelas frestas das janelas olhando a rua, tentando descobrir as casas da vizinhança que tinham sido abandonadas. Ficaram obcecados pela possibilidade de entrar na casa alheia e ver o que tinha lá. E assim faziam. Murtinho saía para descobrir qual a casa que estava abandonada, e lá entravam, sorrateiros e silenciosos, para suas brincadeira de imitar os poderosos.  
 
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