terça-feira, 25 de agosto de 2009

SERTÃO D'ÁGUA - SABÁ DO TALHO III

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continuação...
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A experiência como foguista do Purus lhe deu traquejo em lidar com a lenha. Quando o vapor encostava nos pontos de abastecimento, raramente encontrava o combinado. Os caboclos ignaros, ora vendiam ao primeiro que passasse e iam para a seringa fazer peles, ora deixavam recado pelas mulheres: que a juta deu preço e tinham ido colher fibra.

Inúmeras vezes abasteceu o Purus com a ajuda dos tripulantes, tirando a machado, desgalhando a terçado, o que fosse mais fácil cortar. Aos passageiros pedia que apanhassem sacaí, não se afastando muito. Essa vivência mostrou a ele o valor que tinha uma acha de lenha para as caldeiras, o quanto poderia render o fornecimento regular aos vapores.

Naqueles anos todos, os atrasos do Purus eram muito pequenos, fazendo com que houvesse uma preferência por suas viagens. Entre os viajantes, homens importantes no comércio da borracha, guarda-livros, caixeiros viajantes, pessoas ligadas ao comércio, às casas aviadoras, às seguradoras, gente abastada, artistas e homens do governo. Comandante Fontenele agradecia ao foguista essa regularidade, deixando que ele transportasse o que quisesse e convidando-o sempre para conhecer alguém mais ilustre que estivesse a bordo, sempre o destacando por seu feito heróico na Guerra de Canudos, como quando o apresentou para a grande artista Celina Delisses e o tenor italiano Mário Torcatto. Sabá ficou ao lado do comandante sem entender uma palavra da conversa, sorrindo sem graça. Adelmo e Rapinha riram dele, imitando seu acanhamento o resto da viagem.

Tanta gente importante conhecida no vapor não lhe eram da menor valia. Os ribeirinhos, esses sim, valiam a lenha, a farinha do seu ganho à parte, com eles sabia conversar, rir, vadiar e reaprender o que sabia desarrumado, trancado dentro, obliterado, naquele sertão d’água.
De Manaus, Sabá nunca conseguiu gostar muito, nem desembarcava com os outros, ficava sempre olhando da amurada os passageiros descerem, o comandante entonado ir pros braços de sua amásia, discretamente depois da cuia de mujangué. Cidade grande como Belém, Sabá não sabia de quê, mas tinha medo, ficava arrumando desculpas e serviço pra não descer do vapor nem para ir às casas de mancebia.


Foi com o afastamento do comandante Fontenele, por causa da idade, que Sabá resolveu deixar o Purus, seguir a vida só negociando. Escolheu ficar em Cametá, onde já vinha deixando na mão do seu Catuxo a mercadoria que trazia no Purus.

Mesmo na crise, comprava e vendia peles de borracha e balata, o único que pagava um preço mais justo por elas. Contentava em ganhar menos nas trocas que fazia; era seu jeito de negociar, ganhar pouco mas sempre. Ali ficou até o dia que, avistando com Manel da Coroa, soube da dificuldade que estavam tendo os vapores em conseguir lenha para as caldeiras. O amigo o instigava:

- Tu, meu mano, é o maió fazedô de lenha, radica no lugá certo, põe fretêra... vai... vai... vai... tu negoceia lá tumém. Tu é sabido, Sabá.

Mas o que levou Sabá a decidir mesmo, foi uma briga por à toa com seu Catuxo, pai de Mariinha que vivia embeiçada por ele, apesar do seu desinteresse. Um dia, ela falou pro pai que gostava dele, dando entender correspondida. O velho aviador e político fez gosto e foi tomar satisfação de casamento. Apesar de se conhecerem muito através dos negócios que tinham juntos, a conversa desandou, quase acabou em briga, até o vigário entrou no meio. Sabá, já vendo fracasso no comércio de beira que fazia apenas com a montaria, resolveu ir embora.


Lembrou-se da conversa com Manel e desceu costeando até decidir se radicar no braço do Pau d’Arco, uma nesga de barranco entre o Anambé e o furo do Pitinga, irisado na imensidão daquelas águas. Quando entrou a primeira vez com a montaria no igarapé, ouviu um canto de pássaro soando no denso da mata, somente aquele trinado percuciente. Tudo ali parecia ter parado para ouvi-lo, um silêncio breve, cortado pelo canto mavioso e depois tudo voltou ao igual.
O ponto da primeira compra de lenha era ali e ali foi que construiu a casa, o trapiche, plantou o roçado de mandioca, sozinho como escolheu ser, sabia de si um pedaço, um outro, recôndito sabido, incompleto pela boca dos outros. Uns quinze anos não encontrou ninguém que ao menos lhe contasse. Em nenhum arruado que andou, deixou de perguntar pelo nome do pai e da mãe.

Afanoso, comprou serra, todo tipo de ferramenta, e foi dando trabalho para os vizinhos, formando turma e freguesia. Fazia as rumas de lenha no barranco, a modo que qualquer vapor que passasse via de longe. Com pouco tempo ficou conhecido por cumprir combinados. Se a encomenda fosse tratada, era encostar na beira e carregar. Não havendo combinação, mesmo com sobrepreço, só o que estivesse sobrando negociava.

Sabá, quando tomou a beira no Pau d’Arco e começou a trabalhar ali, passava mais tempo andando em volta, procurando nos vizinhos quem quisesse trabalhar tirando lenha. Num pouco tempo ficou conhecido de todos, admiravam seu querer e o modo inquieto de ele ir fazendo as coisas. Onde ia, o que pudesse render trocava, vendia ou comprava. A canoa era sempre cheia de ramas, bilhas de mel, cupuaçu, cacho de açaí, taperebá ou o que encontrasse.

Onde chegasse alguma coisa, trazia agradando aos vizinhos. O povo do Anambé, inopinado, às vezes aparecia no Pau d’Arco. Uns armavam o muitá e ficavam na caça ao redor. Outros eram preguiçosos, engrolavam a tarefa só um meio de dia, lenhando. Os companheiros, desde a primeira hora, sempre foram Didoro, caboclo sagica, neto de cabano e pai de mais de uma dúzia de filhos, conhecedor de tudo o que era pau bom de fogo, e Cimeu, valente homem que trazia os filhos pra ajudar na talhadia, agüentando o trabalho.

Manel da Coroa foi a valia maior, desde que o conhecera na pensão no Reduto. Sozinho no mundo como Sabá, era ele que levava direto pra Didico no Ver-o-Peso tudo que se tirava dali. Mais de quatro bilhas de mel costumava levar por viagem, castanha, cacau, óleo de andiroba e alguma pele mesmo sem preço. Sabá dizia – é pouca de muita, meu mano, levava frutas tiradas no mato e a farinha que fazia com a ajuda de Dondoca do Cimeu.

O amigo trazia de Belém o que Sabá pedia: o sal, a camisa de morim feita por Zinhá lá na pensão do Reduto, a serra nova, menos a morena bonita que sempre encomendava. Manel todo ano chamava pro Círio, mas Sabá não gostava dessas coisas de reza, igreja, procissão. Dizia que pecado era correr do que viesse na vida.

- Tu encosta numa murena é lá, meu mano, pur obrigo de lei, tuma um banho de “pega mulher” da barraca da tia Merença, de véspera acha; e na procissão já tá cum ela. Mania do mano pensá que o Círio é só pra rezá, se tu num gosta, lambuza só no prufano, dizia Manel.

Sabá, raras vezes, lembrava-se do hospital, das orações que ouviu, das visitas que recebia, tinha saudades era da pensão, de Zinhá, da Dotéia, do Purus. Daquela moça de Óbidos que só ficava de longe olhando e quando ele chegava perto, ela corria. Foram quase dez anos aquele regateio dela. Na última viagem que deu, quando o Purus desatracou, ela acenou como se adivinhasse ele não voltar. Lembrava com saudades Maria Pipira com quem se deitava em Santarém. Do furo do Pacoval onde Didira se arrumava nas folhas de tucum, chamando vem... vem... vem... faltava o paxicá que Curiboque preparava quando ouvia o apito do Purus... e a conversa boa do cearense Severo.


Sabá escolheu o lugar da demanda primeira de lenha de quem navegasse rio acima e da demanda última de quem viesse rio abaixo. Valia-lhe os muitos anos como foguista do Purus, lhe valia o amigo Manel da Coroa ajudando.

O começo, um pequeno tapiri feito na beira-rio, a acendalha seca num canto e no tendal o peixe que o matapi sustentava. O tempo passava, o lugar ia tomando forma. Nos lugares ínvios Sabá abria passagens até onde identificava fazer lenha, marcava açacus, tucumãs, pracaúbas. Fazia o roçado pro manival atrás da casa começada, ao mesmo tempo que cuidava do trapiche, de ir aumentando os cômodos, arroteava o quintal, um serviço de nunca acabar. Cada vez que Manel da Coroa encostava, trazendo as encomendas de Sabá, um dia de ajuda gastava com o amigo se gabando saber trançar palha como ninguém.

Sabá era um solitário, ia construindo devagar, punha etapa em qualquer serviço, desobrigava da pressa e ia fazendo tudo com capricho. Nos seus planos de tirar lenha estava aproveitar tudo que pudesse em volta de cada pau marcado, a caça da necessidade sempre encontrada, frutas, cocos, favas, mel. Tirava palha e fibra pra tecer, resina, raiz, casca e óleos pra remédio.

O que não gostava muito era de pescar, achava um serviço desenxabido, no muito armava o matapi ou se provia de peixe encomendando a Manel uma manta de pirarucu salgado ou quando ia à Vila do Beja trazia o pescado de lá.

Conheceu Merina numa festa de São Miguel Arcanjo na Vila. Andava pelo arraial frente à igreja, quando sentiu o cheiro dela, espargindo, passando rente até sumir no meio do povo. Ficou a noite toda procurando por ela até desistir na primeira fisgada de sono. Foi só no outro dia que voltou a encontrá-la, no trapiche, quando já ia embora. Ela desviou o olhar, assustada com sua cicatriz, mas Sabá fingiu que não viu. Desamarrou a montaria e remou devagar levando o cheiro e a figura dela na lembrança.

Toda noite pensava na moça. Começou a ir à Vila, semana sim, semana não, mas nunca a procurou afora com o olhar. Remava as horas no aproveito da maré e ficava até vazar. Negociava nas baiúcas da feira, aninga, cumaru, mel e farinha. Não que precisasse, Manel da Coroa levava tudo o que produzisse, mas precisava era da desculpa pra ir à Vila.

Bastou um dia perguntar a dona Saluciana, para que todo povoado soubesse de seu interesse pela moça. Ela veio no dia da festa com o irmão que vive com uma tapuia aqui perto, mora em Belém, nunca mais apareceu, disse-lhe Saluciana, rindo porque a moça também perguntou dele e ela contou tudo, do Pau d’Arco, do foguista famoso que foi no Purus até a história de militar reformado por ferimento em combate de guerra. Os detalhes, não escasseou, contou até que ele não se lembrava de nada da família, só sabia o que ouviu dizer, do quase um ano que passou lutando contra a morte.

Única vontade que teve de não ser sozinho foi quando viu Merina. Por isso fazia muitos meses que se acostumara ir à Vila de Beja. Quando dona Saluciana lhe contou do interesse dela também, Sabá pôde até sentir o cheiro de cravo e canela recendendo por dentro como na noite em que a viu.

- Tu vai tumá ela de casamento, seu Sabá? Vai...? vai...? vai...? insistia dona Saluciana.

Ele respondeu apenas com o riso, mas por dentro achava que sim. Imaginava como encontrá-la em Belém, através de Zinhá ou do tenente Dalberto. Haveria de encontrar um dia nem que tivesse que bater de casa em casa.


O encontro dos dois se deu numa das poucas idas de Sabá a Belém. Foi visitar a dona da pensão a quem devia tanta gratidão, mas o que queria de verdade era que ela o ajudasse a encontrar a moça, cuja única coisa que sabia era ter um irmão que trabalhava no serviço telegráfico do governo no Anambé. Qual foi a sua surpresa que ao chegar à pensão, a primeira pessoa que viu foi Merina, garrida, sentada no cepo na porta da casa. Ao vê-lo correu, deitou na rede cantarolando baixinho. Era sobrinha de Zinhá e sentiu o mesmo que Sabá quando o viu de novo. Ficaram se olhando sem nada dizer, cada um mais sem graça que o outro e ao mesmo tempo cada um mais querendo que o outro. Durou até a tia aparecer na porta da cozinha em choro de alegria com os braços abertos.

- Sabá, meu filho, quanto tempo num tê vejo, estás bonito, parrudo. Conta pra tua Zinhá, o Pau d’Arco já virou um arruado?

Fez festa, abraçou e acarinhou sua barba, parecia um parente de verdade. Conversaram por muitas horas, ele sem tirar os olhos de Merina, roendo o taperebá verdoengo: ela sustentando o olhar e a tia rindo com gosto.


Na semana toda que Sabá ficou na pensão os dois só se separavam quando a madrasta de Merina mandava chamá-la e, assim mesmo, Sabá ia acompanhando e lá ficava até tarde da noite.

Foi a primeira das muitas vezes que Sabá saiu do Pau D’Arco em compromisso com Merina. O agarramento dos dois cada dia era maior para a alegria de Zinhá e conformação da madrasta, sempre reparando desconfiada os agrados que Sabá lhe trazia, por mais que gostasse do tucupi feito no Pau D’Arco, nunca dava o valor.

Seis meses passados estavam casados.
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continua...
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