sexta-feira, 28 de agosto de 2009

SERTÃO D'ÁGUA - MERINA

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continuação...
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Merina


Um cheiro de cravo e canela recendia na noite espalhando sua vontade. Sabia esperar quando queria. Fingia afazeres, preparava a água na bacia com pitadas de cravo e canela, deixava no canto do quarto o dia inteiro, encorpando o cheiro. Esperava a boca da noite pra banhar e arrumava os cabelos vagarosamente até ele chegar, instigando com o cheiro e o calor do corpo as mãos grossas de Sabá, cheias de mistério, capazes de cortar mil achas de lenha no dia e, à noite, fazê-la arder até a madrugada em gozos e enlevo.


Era toda a vida que queria Merina. Sozinhos naquela beira, sem filhos, acostumaram viver isolados na curva daquele braço. Uma vez por ano visitava a madrasta na época do Círio. Uma vez por ano a madrasta vinha com a tia, que gostava de Sabá como fosse filho. Ficavam sempre a semana em receitas e picuinhas e na vontade de Zinhá em ir no Anambé, apesar da febre sempre por lá. Acabava nunca indo.

Merina não se importava mais com a história dele, até a cicatriz que a assustou uma vez passou a fazer parte da beleza que agora via. Descobria a cada dia que passava um mais bonito escondido, seu homem, gostava de falar: - meu homem.

Só achava triste ele não ter o que lembrar, por isso cuidava sempre estar satisfazendo o menor gosto de Sabá. Desde passar óleo de andiroba pelo corpo todo de manhã, antes dele sair pra tirar lenha - evitando os piuns - até levar a cuia de açaí com farinha de tapioca no mato onde estivesse lenhando.

Quando sacava a mandioca, separava uma quarta e tratava pra peneirar o cuí que ele gostava de misturar com mutuã e muita pimenta de cheiro. Às vezes, ele a surpreendia no manival e ali mesmo eles se deitavam numa touça qualquer e o atorá voltava vazio.

Quando Sabá a encontrou na casa da tia, sua madrasta não gostou de vê-la com ele, não sabia quem era, aquela cicatriz o fazia parecer um bandido, não tinha criado a enteada com estudo e prendas para qualquer um, dizia. Mas quando soube ser ele o herói com medalha que a cunhada Zinhá, muitos anos atrás, cuidou e falava tanto na pensão; que recebia soldo da Brigada Militar, mudou de opinião.

Dona Bilinha era uma senhora muito distinta, havia acabado de criar os enteados, viúva e costurando para boa freguesia, achava Merina muito nova ainda pra viver isolada, na distância dela. Tratava Sabá bem, mas não dava muita intimidade, receava um pouco aquele homem mais velho e sem uma família, um passado direito, uma religião.

Merina, nas viagens que Sabá dava a Belém para vê-la, ficava olhando pra ele, imaginando aqueles silêncios na vida futura dela, mas durava apenas o instante que as mãos lhe pegavam os seios ou passeava pelas suas coxas. Gostava do atrevimento de Sabá. Já lhe dera inteira antes do casamento, era seu homem, despudorado e acanhado ao mesmo tempo, ela gostava daquele jeito dele, direto, conhecedor dos arcanos de seu corpo, sabia tocá-la em cada parte, senti-la embevecida de prazer, queimando.

Quando perguntava por outra na vida dele - e se tivesse mulher e filhos? - Ele respondia que, nos documentos no quartel era solteiro, mas teve muitas outras quando viajava no Purus. Sem apego nenhum falava de Dotéia, Maria Pipira, Didira e Nanu, dizia.- Nenhuma tinha teu cheiro Merina, deitava só com o corpo.

Estranhava que ele não lhe perguntasse nada de sua vida, era atencioso com tudo, ouvia calado seu tempo de menina, via sorrindo ela cantar e dançar lundu, até gostava, não se importava com o par quando iam a alguma festa. Mas não demorou nada pra aprender os passos e a acompanhar, era o jeito do ciúme dele.

O que mais gostava Merina era de ir com Sabá ao Ver-o-Peso. Ali era pouco conhecido mas o tratavam com muito respeito. Quando Didico ou alguém mais antigo o distinguia e apontava, ela se sentia importante com tanta gente vindo falar com seu futuro marido.

Quando chegaram no Pau d’Arco, levados por Manel da Coroa, Merina gostou, gostou muito do que viu. A casa construída no alto do barranco com varanda na frente e um passadiço até o trapiche, no meio do limpo. Os cômodos separados nos vãos das portas por cortinas de miriti, o talho na cozinha, as achas de acapu empilhadas no canto, a bacia de banho pendurada, o oratório com a imagem de Nossa Senhora de Nazaré na sala, um luxo que sua tia ajudou Sabá arranjar. Meio de lado entre a casa e o trapiche um enorme pau d’arco ladeado de pupunheiras, biribás e açaizeiros.

Atrás uma samaumeira separava o roçado de mandioca da casa de farinha assentada em palafitas no igarapé do Pau D’Arco, ao lado contrário da casa a pilha de talhas no rasgado de barranco que dava até pra vapor encostar. Mas o que mais lhe agradou foi a Criola. Quando Merina se aproximou, ela a olhava curiosa, mexendo a cabeça devagar como se olhasse ora com um olho, ora com outro, balançando o bico bem devagar, destravando a língua:

- Muçu nucomo... muçu nucomo... muçu nucomo...

Zim se trançava nas pernas de Sabá e nem tomava conhecimento da presença dela. Demorou tempo o dia que estava sentada no trapiche com a maré cheia, os pés dentro d’água; Zim chegou de mansinho, enfiou a cabeça no seu colo e ficou ali quietinho.


Por anos agüentou a solidão daquela ponta de braço, agüentou o cozinhar pros caboclos lenheiros, o silêncio das horas durante o dia e o barulho dos bichos na mata durante a noite, ficava ouvindo a pipira e sonhando com movimento da pensão da tia no Reduto, tanta gente pra conversar tantos assuntos, vontade de dançar um lundu nas festas de Ana Cavoca, queria descansar da tagarelice igual, da Criola, do latido à-toa de Zim e do modo calado de Sabá só dando valor no serviço, pensava Merina.

Tentava adivinhar o que ele sentia quando parava sem gestos olhando a imensidão d’água como se ficasse esperando alguma coisa, sabia tristeza nele.

O meu homem ficou sendo hoje o igual ontem, igual... igual... igual... pensava. Foi se desacostumando a banhar de bacia perfumada com cravo e canela para esperá-lo, ele parecia nem ligar. O fogo dos primeiros tempos virou brasas cobertas de cinzas, avivadas só vez em quando. Merina sentia falta do toda hora como no começo, falta de filhos que Sabá queria tanto, de ir mais vezes à Vila de Beja, dalguma festa de batuque. Conformada, armava o cacuri, esperava a freteira de lenha, o mês do Círio todo ano, cada dia mais macambúzia e sozinha.

Quando vieram chamar, Sabá estava no mato derrubando um cumaru, Merina foi só com Batuco na vigilenga pelo igarapé na reponta, por entre as ventosas e maruins até onde ele adelgaçava chegando no Anambé. O folhame quase cobria a choça, uma desolação. Ela deitada no chão num tupé, o fogo apagado e o tendal vazio, as lamparinas acesas ao redor e o filho sentado no monte de palha de arumã brincando com embuás, falando baixinho como se entendesse: - sezão veio... veio... veio... Embrulhada no tupé, a tapuia foi enterrada com o tosco crucifixo que Batuco fez e a oração que Merina rezou em silêncio.

Antes de voltar ao Pau d’Arco deu um banho em Bité, dali não levando mais nada. Preocupava, de Sabá chegar e não encontrá-la. Foi o que aconteceu, encontrou o marido no fogão esquentando óleo de copaíba com o pé cortado num resvalo de machado. O marido entendeu o avexo, tratou com carinho, como o menino Bité fosse filho.

Naqueles primeiros dias, Merina cuidou do sobrinho com quinino e leite de amapá, medo da moléstia ter vindo instalada. Bité bugiava indene, gostando do chá de fava de jucá com mel aliviando a tosse. Raspava com as mãos a cuia do caribé que a tia fazia, sempre pedindo mais.

Com a presença do sobrinho, o Pau d’Arco e a vida de Merina mudaram completamente. Agora tinha com quem conversar, fora a Criola. Ensinava Bité como um filho, contava historias, parecia ter a idade dele quando iam banhar juntos. O menino encheu a vida de Merina em todos os dias.

- Bité vem passar mutamba no cabelo da tia!...

E assim foram criando o menino. A vida mudando pra Merina, mais alegre apesar do alheamento de Bité com muitas coisas do costume deles. Voltou a ter alegrias, ensinando o sobrinho lidar com talas de arumã, fazer paneiros e moquear um tamuatá. Voltou a preparar ipuruna com a ajuda de Bité, a tirar a bacia do gancho, descansando a pitada de cravo e canela para o banho e o agrado de Sabá.


Um dia apareceu Batuco mais um casal de tapuios, parentes de Bité com o jamaxim vazio. Vieram pelo mato e ali ficaram parados sem falar nada, um ao lado do outro. Batuco contou que eles moravam na mucruará, uma hora dali.

- Sabá num vai gostá, tu sabe... falou Merina pra Batuco, que logo deu pressa de ir embora. O casal ficou ali no terreiro, calado, um ao lado do outro. Nem olhar não olharam pra Bité e ele, muito curioso, queria saber quem eram, por que não falavam nada.

Quando Sabá chegou todo picado de cabas não gostou de ver os dois tapuios, mas mesmo assim mandou separar uma quarta de farinha, tabaco e um pouco de sal, deu a eles dizendo que se quisessem trabalhar, encontrassem ele e os companheiros na samaumeira do Cimeu, bem cedo, tinha serviço de lenha pra ele e na farinha pra ela.


Desse dia em diante os tapuios passaram a aparecer de quando em quando. Muitas vezes chegavam ainda escuro assustando todos. Merina tinha medo mas fazia o mesmo, uma quarta de farinha, tabaco e o sal. Bité acostumou de vê-los sempre ali, sem falar nada, um ao lado do outro, e toda vez os chamava pra trabalhar, imitando o tio. Era o povo de Bité agregando neles.

continua...


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MQ
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