domingo, 31 de janeiro de 2016

O idealizado - mq


 

Para ele, era a pessoa mais maravilhosa que já conhecera, aquela beleza que quanto mais se olhava mais se percebia, ficava deslumbrado. Seus gestos, a voz, o olhar eram na dose certa; o mistério e a simplicidade misturando-se em harmonia. Uma alegria contagiante, no jeito sutil e embriagado. Assim foi nascendo. Quanto mais a conhecia, mais amplificava a sensação de que era tudo que sonhara. No começo ficou arrebatado com o amor, com a pessoa. Sentia-se feliz, muito feliz.

Para ela, na primeira mentira, o perdão. Depois um descaso corriqueiro, perdoado. Outras mentiras e o perdão. Em alguns momentos, parecia uma estranha, distante, confusa, inventando situações. Provocando ciúmes, desconfianças e pequenos jogos de sedução. O amor era maior, desculpava e abrandava tudo, a vida seguia.

Para ele, cada vez que a perdoava, uma mágoa ficava plantada no coração.

Um dia telefonou e a gravação informou número inexistente. Passou na porta da casa e não viu o carro; bateu assim mesmo, insistentemente, até um vizinho informar que ali não morava ninguém. Procurou-a no trabalho, não a conheciam. Ninguém a conhecia em nenhum lugar onde estiveram juntos.

Chegou um tempo amargo e dolorido; não a queria mais e ao mesmo tempo queria desesperadamente.

Tentou em vão achá-la. Para ele, a mulher inexistente existia.

 

 
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sábado, 30 de janeiro de 2016

Eito

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sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Voo - mq

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quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

O primeiro e o segundo - mq


 

Ela freqüentava, semanalmente, porções, mandingas, magias e todo tipo de encantamento. Conseguiria, diziam os vizinhos, parentes, amigos e a vendedora - era só ter fé.

O que mais consumia suas horas: ter fé.

Toda semana, novas infusões, chás e beberagens; puçangas e qualquer que fosse a indicação; rezas, jejuns, simpatias. Havia de conquistá-lo. Tinha fé, muita fé.

Ele, objeto de tanta perseverança, quando muito um bom-dia, boa-tarde ou boa-noite. Formal e muito sério. Ela amava e o queria mais que tudo.

Quase desistindo, ouviu falar de um lugar em que faziam trabalhos, tanto para o bem quanto para o mal. Leituras, combinados e pactos para os que não se importassem com o preço a pagar.

Lá, ouviu que o caso era muito difícil, requeria entrar no mistério do mais profundo das trevas e fazer combinação de troca com o maior. Aceito, nem precisava se preocupar com mais nada, nem beber preparados, rezar, ter fé, nada disso. Aceito, ficava em curso a troca. O primeiro e o segundo dos filhos seriam entregues antes da terceira mamada.

Assim, no outro dia ele parou para conversar. Em um mês, freqüentava sua porta; pouco mais, o casamento.

O primeiro engasgou com o colostro na segunda mamada. O segundo, depois que o marido morreu, ela procura todos os dias quem lhe faça.

O pacto conduz o desejo de mão em mão, e um maligno sedento mantém leite escorrendo em seus seios, para lembrar a falta do pagamento.

 

 

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quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Fava - mq

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terça-feira, 26 de janeiro de 2016

São José Diligente

 
 
 
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segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Velha saudade - mq


 
Tinha andado o mundo todo, mas sentiu vontade de voltar, não para nada específico da profissão.

Sentia saudade apenas das ruas, do lugar onde viveu na mocidade, das pessoas que ainda reconhecia. Viver longe foi como precisar dormir para sonhar. E agora não; voltara, sonhava acordado e não precisava da lembrança para lhe entregar o cheiro da sua terra.

Gostava mesmo de andar pelas ruas, da boemia, de ver o dia entrando na manhã.

Sabia dosar o olhar de mundo que trouxera, já cansado; gostava de freqüentar os cabarés da cidade velha, ouvir o apito dos navios fundeados, chamando os marinheiros despejados nas ruas.

Sentia-se um privilegiado; anônimo sem feito algum, mas um privilegiado.

Nenhuma nostalgia, mas lembrava-se dela, sempre misturando naquela saudade as mulheres que freqüentara.

Demorou poucos dias para saber da tragédia; um ferimento doméstico descobriu o câncer que comia a carne. Meia dúzia de pessoas acompanharam o enterro, os clientes não ousaram aparecer.

Para ele ficou uma carta deixada com a dona do cabaré, para que ela lhe entregasse, se um dia ele aparecesse. Nela, só falava de saudade e dizia que seu maior desejo naquele resto de vida era ouvi-lo tocar as músicas de Ismael Silva.

Despedia-se em letras trêmulas e com muito sentimento.

Dizem que, até hoje, quem passa de madrugada na porta do cemitério ainda escuta uma música dolente, como quando ele, enquanto viveu, tocou na beira do túmulo da mulher da vida.

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domingo, 24 de janeiro de 2016

São Gonzaga

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sábado, 23 de janeiro de 2016

Corrente - mq

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sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Maracatutando

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quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Está tudo combinado - mq


 
O telefone tocou, madrugada do dia mais quente do ano; tocou muitas vezes. Quando atendeu, a voz pastosa de uma mulher parecendo embriagada disse, tentando sussurrar – está tudo planejado, morrerás ainda hoje – e desligou.

A essa hora? Pensou, e voltou a dormir. Novamente o telefone, a mesma voz, a mesma frase.

Que droga, pensou; tomou água e foi ao banheiro.

De novo? Trote a uma hora dessas! Levantando de novo, para outro copo d’água e o banheiro.

Na quarta vez, tentou fazer uma pergunta – e como morrerei? Do outro lado desligaram, como das outras vezes.

Pensou que fosse brincadeira de algum amigo imitando voz de mulher ou, quem sabe, mesmo uma amiga. Aquela respiração parecia-lhe familiar, coisa chata.

Na quinta vez que o telefone tocou, ele apenas tirou do gancho, mas ficou olhando o aparelho, não conseguia dormir.

Olhava o telefone fora do gancho e sentia uma vontade inexplicável de ouvir de novo a ameaça e a mulher respirando abafado. Era como uma necessidade.

Aquilo durou o resto da madrugada; uma dezena de vezes ouviu a voz, mesma entonação e as mesmas pausas, parecia uma gravação.

Quando o dia amanheceu, já tinha fumado quase um maço de cigarros e estava esperando o telefone tocar de novo. Sete horas, mudo. Sete e meia, continuava mudo. Tomou banho, fez o café e quando ia saindo para trabalhar, já próximo da porta, o telefone tocou. Era a mesma voz, que perguntou:

     Você ainda tem cigarros?

     Estou fumando o último – respondeu, acreditando que ela ia ouvi-lo sem desligar.

– O veneno está nele... Adeus.

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quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Relógio da Saudade

 
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terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Mina - mq

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segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Seu Rufino

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domingo, 17 de janeiro de 2016

Cena de esquina - mq


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O crime: uma facada no companheiro de esquina; motivo: a traição da cadela que lhe dava amor.

O barulhento vizinho sentiu ciúmes e, da gentileza do início, acabou por tomá-la à força, uma vez, duas, três, até impor a rotina.

Descoberto naquela manhã, a briga foi como um duelo que a cadela presenciava, grunhindo em volta. A ferramenta afiada tomou corpo de faca e tal qual abriu um ventre.

A morte rondou o estuprador, os médicos a espantaram.

O amante desapareceu sorrateiro, com a cadela soluçando nas mãos, fugiu pouco, a polícia prendeu.

Ficou a cena na esquina, suspensa, e quatro anos de prisão.

O animal dali não saiu; passava dias e noites cheirando os cantos, a calçada, o lugar da casa de papelão e restos de madeira que a limpeza pública, comprovado o abandono, demorou a recolher.

Quando o sedutor voltou em ataduras, olharam-se. Ela triste e assustada, ao vê-lo resignou-se e, pensando no outro, por ali ficou definhando submetida, mas rondando o quarteirão, decerto procurando entender sua razão.

Durou poucas semanas até, numa segunda-feira, jogar-se debaixo de um ônibus qualquer.

A cena na esquina novamente ficou presa no ar e o arrogante sedutor colheu todas as noites de solidão do lugar.

Aberta a cela, a saudade ardia e a vingança pairava no ar; o comborço já não havia. Alguma doença o comera pelos pulmões. Morreu em cena, na esquina, esperando o companheiro e parente sair da penitenciária para, juntos, chorarem a falta da cadela.

 

 
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sábado, 16 de janeiro de 2016

Rio Branco

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sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Poço - mq

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quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Dentro do olhar - mq


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Olhava pela janela toda manhã.

Acordava e se vestia como para ir numa festa; os cabelos impecavelmente penteados na rotina de todos dias; a caneca de café esfriando numa das mãos e o mesmo livro aberto na página que nunca lia. Assim esperava, casual, nos preparativos e na postura.

Esperava, adivinhando o momento certo em que ela iria virar a esquina.

A roupa, sabia acertar só de vez em quando; o jeito dos cabelos, nunca conseguiu adivinhar como estariam. Era quase um ritual aquela espera. Quando ela aparecia, a sensação de propriedade; para ele, ela era sua.

As pernas torneadas na saia curta, combinando com sapatos de salto alto, e os cabelos amarrados como rabo de cavalo ou a calça bem apertada com cabelos soltos e sapato baixo. Enfeitava-se para ele e para as manhãs, era sua ilusão.

Nos domingos nem se levantava, ficava imóvel até a hora do almoço, deitado, sonhando com os dias passados e com a segunda-feira.

Nunca trocaram um olhar sequer; ela passava como se deslizasse pela calçada, ele fingia beber o café, virava a página do livro; tudo como se fosse um ensaio. Ao abaixar a caneca, ela saia do ângulo da visão. Ele suspirava, esticava a mão para as muletas e saía para o interior da casa.

Ele a amava e bastava tê-la todos os dias dentro do olhar.

Bastava fingir não invejá-la caminhar.

 

 

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quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Relógio Velho

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terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Bica - mq

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segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Renda Branca

 
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domingo, 10 de janeiro de 2016

Obra-prima - mq


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Magro, muito magro. Andava pela rua puxando o ambiente em volta pra dentro de si. Parecia, em tempo integral, ensimesmado; como se tecesse uma malha improvável com o que percebia ao redor. Quando menino, na adolescência, depois adulto, sempre fora assim.

Em qualquer lugar em que estivesse, parecia não estar presente, nem era notado. E quando estava, pouco falava. Mas sorria e ouvia parecendo não entender nada e, ao mesmo tempo, estudando cada palavra, cada semblante à sua volta.

De vinho gostava muito, uma taça só tomada em pequenos goles, enquanto sua fisionomia mudava, o rosto ficava ríspido e nele uma possibilidade de mutação se desenhava. Era quando desaparecia, como se algum caminho o tivesse tragado.

Nunca recusava um convite. Na hora marcada estava lá, primeiro a chegar e a sair. Houvesse vinho, uma taça. Se não, o tempo de se dizer ali, sem de verdade estar.

Dele não se sabia nada. Onde morava? Tinha família? O que fazia pra viver? Nenhum amigo mais próximo, nem um amor. Nada, um mistério...

Ao ser perguntado: moro aqui perto, tenho um irmão que não vive aqui. E sua profissão, respondia de pronto: sou poeta. Assim interrompia qualquer conversa sobre si. Profissão: poeta, era tudo que se sabia dele.

Quando o encontraram, na praça em frente, naquela manhã, apenas o silêncio transitava nas imediações, parecendo acompanhar o corpo do velho poeta.

Na necropsia, o espanto. Nas suas vísceras só havia poesia.

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sábado, 9 de janeiro de 2016

Morro Imaginário

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sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Brinde - mq

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quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Último encontro - mq


 

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A revelação não o surpreendeu; suspeitava desde muito, na infância, na mocidade. Sempre uma coisa estranha, espécie de comichão dando no centro do corpo e uma coisa saliente no pensamento vazando inteira para as extremidades dos membros. A atenção redobrava, os sentidos aguçava o raciocínio formulado com muita rapidez, quase aviltava o interlocutor.

Ela era bela e sofisticada, curvava o olhar enquanto falava, parecendo querer ser interrompida, confrontada com alguma razão. Ele apertava os olhos e disfarçava dúvidas, não contracenava. Ouvia. Só ouvia.

A revelação veio entre a intenção das palavras. Claro como aquela tarde quente, estranha como as probabilidades do seu corpo. Ele era um demônio...

Sim, um demônio, sentia, sentia ser. Foi como um rastilho de pólvora aceso, seu pensamento correu o passado todo. Era mesmo, lembrava-se a cada momento de suas transmudações ao longo da vida.

Queria rir, gargalhar, mas se conteve. Impassível, ouviu a transgressão confessada, o desejo de remissão impresso na voz. Viu nos olhos molhados nostalgia e nenhum arrependimento. O esforço que ela fazia para inventar uma história já não tinha importância. Era só um espectador. A beleza ele já roubara. O arbítrio da fé não o interessava. Apenas ergueu o copo. Em silêncio, brindou ao pecado que a colocara inteira no seu inferno particular.
 
 
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quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Primavera - mq

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terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Lembrando Eurídice

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segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Lua - mq

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domingo, 3 de janeiro de 2016

Chula do vaqueiro Bité - mq


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A chula marajoara

Ressoando pelas margens

Embalou braço de rio

Pras lagoas deu aragens

 

Em cada merecimento

Fica muito pra cantar

Tantas partes dum momento

No viver de cada olhar

 

Envinha de pra longe

Por aqui eu quis passar

E contar minha história

Que é também a do lugar

 

Vivo como o desafio

Que o rio faz ao mar

Sou menor do que a vida

Mas não canso de lutar

 

Minha mãe não me pariu

Se foi antes de eu chegar

Na morte dela que vim

Sou nascido de um findar

 

Fui criado pela lida

Na presença do meu pai

Cavalguei sua desdita

Desde meu primeiro ai

 

Meu pai se foi numa cheia

Na tristeza afogado

Tempo ainda de eu menino

Sem madrasta ou pecado

 

Numa mão lavrei um remo

Na outra trancei um laço

Nos pés fiz meu cavalo

A canoa fiz no braço

 

Menino eu fui vaqueiro

Laçando fui coragem

Remando chorei baixinho

No rumo da minha margem

 

Pelas águas fui crescendo

Recebendo o encantado

Que guiava o caminho

Como estando ao meu lado

 

Nos retiros eu cuidei

O tanto de ser amado

Encantei moça donzela

Muita mulher de casado

 

Minha vida em rodopio

Foi em volta do patrão

Nos pastos segui o fio

Virei, sendo, seu ferrão


 

 

 

Eu sou balanço

Eu sou de ouro

Eu venho no jogo do mar

O meu cavalo é maresia

Eu sou balanço

Eu moro no fundo do mar

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(*) Domínio Público Adaptado

           
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sábado, 2 de janeiro de 2016

Canto de bom entôo

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sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

Chula do vaqueiro Joque - mq


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Nos ermos do bem longe

No mundo de todo espaço

Um canto marajoara

Cai na roda feito laço

 

Não tinha noite nem dia

Na lida de todo esforço

Um animal o vestia

Dos pés até o pescoço

 

Vez nos campos alagados

Outro num tanto estiano

Sem tempo para reparar

Todo querer desumano

 

Seguia sempre na vida

Com a morte combinando

Seu modo de encantado

Natural e suserano

 

Animal enterrou chifre

Desmorrer não foi engano

Guariba surgiu das folhas

Esturrou por mais de ano

 

Um bote brotou da terra

Picando qual desengano

Cavalo quebrou a perna

Remédio foi um ramo

 

Pescoço estalou na queda

Da morte foi desmorrendo

Encanto se sabia

muito nele vivendo

 

Um dia o canto triste

Na distância ressoou

Esbarrando todo encanto

No desencanto do amor

 

Vaqueiro desencarnou

Fez valer o que é pequeno

Para gente que tem fervor

Virou, sendo, noutro pleno

 

 

 

 

“Ê guará-guará ê ...

Ê guará-mirim...

Eu conheço pelo olho

Quem fala mal de mim

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(*) Domínio Público Adaptado

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