sexta-feira, 2 de outubro de 2009

SERTÃO D'ÁGUA - VER-O-PESO

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continuação...


Ver-o-Peso


- Pruquê tu duvida, meu mano? A meuã alevantú no meo do piri e tumbô arremetida, retinindo onça. A vigilenga pendeu e jugô tumano a cueira, a meuã sumiu no perau, mea santa, axi!

Contava Zé Panema para o vendedor de peixe. Os dois encharcados de cauim como era costume quando se encontravam. O vendedor ria, punha dúvida no contar do amigo, persignava-se, irritando Zé Panema que sentado levantou, deu um cambaleio derrubando um carregador com o alguidar de tucupi. O barulho ingente dele quebrando no chão chamou a atenção de todos e assustou quem estava por perto. Em minutos a multidão estava formada, ouvindo-o insistir no que contava.

- Tu bebeu cum ela, Zé Panema? Gritaram da multidão.

- Tu prenhô ela, Zé Panema?

- Chama tia Merença pra benzê, leva raiz de pajamarioba com casca de sucuba, senão vai nascê um Paneminha assombrado, axi! E a multidão ria em meio à balbúrdia.

- Tu tumô na poronga, Zé Panema?

Amesendados nas imediações do necrotério, um pelotão da brigada, comandado pelo tenente Alvino, fazia prontidão desde aquela manhã. Ao ouvir o barulho e a confusão, correram de pronto, dispersando a multidão, prendendo os dois bêbados que discutiam os prejuízos com o dono da mercadoria.

Naquela antevéspera do Círio, a tarde estava mais quente que o normal. A agitação da manhã havia acabado, tudo indicava que ia continuar assim, calmo.

Mas estava enganado o tenente. Naquele momento, o grito de Filó encheu o ar mormacento da tarde, o ajuntamento de gente foi imediato. Um corpo boiava no meio dos igarités, bem onde Filó ia lavar o jambu e encher o balde. Assustou-se, saiu gritando por entre as pessoas, até ser socorrida pela mãe que, percebendo o grito da filha, veio correndo. O tenente avistou apenas Filó sendo levada. Venceu a distância em segundos enquanto ouvia os gritos - é aqui... aqui.... as pessoas chamando... - tem um morto! Só assim entendeu o grito da mulher que queria, e foi ver.

O Ver-o-Peso virava num burburinho de gente querendo chegar na beira; os soldados isolando o lugar, o povo se apertando cada vez mais, alvoraçado com a chegada dos bombeiros.

O fato ganhou as imediações, foi se espalhando pela cidade como um rastilho de pólvora. Num instante, a multidão foi aumentando, até parar os bondes que não tinham como trafegar pelas ruas próximas ao Ver-o-Peso.

Cada um tinha sua versão do ocorrido: uns descreviam o combate do morto com a visagem; outros que era ela própria que findara debaixo dum casco de vapor. Muitas versões circularam pela multidão querendo chegar mais perto do necrotério para onde foi levado.

O corpo já estava em decomposição, viera com a maré, sendo comido pelos peixes, irreconhecível.

No necrotério, ficou estendido ao lado do outro morto, vindo do Porto do Sal, exposto à curiosidade do encarregado, que se gabava como se entendesse da ciência:

- Esse morreu afogado, era novo ainda, uns vinte e poucos anos, se muito. Sem identificação, roupas boas, um pouco descuidadas, mas boas. Já aquele Sr. Raimundo de Souza foi ataque do coração. O mais novo não temos como identificar com o que restou das roupas, só uma única coisa posso quase garantir, vivia sozinho. É uma dedução, seu Libório, pelos botões... alguns pregados com linha de outra cor... só pode ser! E pela idade, talvez seja um militar, um estudante.

Seu Libório tirava as medidas calmamente quando a mulher chegou, chorando. com as duas filhas pelas mãos e seu Dedé do Acaraqui, compadre dela, que a buscou no Combu com a notícia da morte do marido. Lá fora juntava gente querendo ver os corpos, saber dos detalhes. A brigada de prontidão, instalada ao lado do necrotério, com ajuda dos bombeiros, foi desfazendo a confusão formada nas imediações.

O tenente Alvino com mais dois soldados examinavam o porto do Ver-o-Peso, por entre os igarités e freteiras, fazendo uma pequena multidão acompanhar. Nada achando, chegou até a barraca de Tia Merença, onde Filó estava sentada no chão se refazendo do susto.

- Quem é? Perguntou à moça, - peguei nele Alvino... por São Marçal, peguei nele...

O tenente acalmou Filó e a multidão em volta, contando que ninguém sabia quem era, tinha morrido afogado, era a única coisa que sabia.

Na porta do necrotério, o repórter perguntava à viúva sobre o morto. Ela não conseguia falar, o choro tomava conta, Dedé falava por ela:

- Tuda vida cumpadre Reimudico medrou de visage, tinha medo inté dus barulho da água na quilha, assombrado... assombrado... assombrado...! Era só falá dum assunto mais do lado do mistério, que ele saía de perto. Valente que era, num medrava de nada que era vivo, não.
Uma vez entralhava a rede, deu cuíra de ver a soca mexeno demais na aragem... correu, era a sucuriju de maior tamanho que teve no Combu. Foi a única vez que correu dum vivo.

Enquanto o ribeirinho falava, o funcionário do necrotério fez sinal para o repórter entrar, como se tivesse outras informações a dar. Na porta, a multidão aguardava curiosa qualquer movimento.


continua...


MQ

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