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Havia dias que passava pelo pátio e olhava de soslaio para o pé de crisântemos amarelos, plantados no vaso marrom de tintura corroída. Gostava dos vasos assim, feito fotos antigas, repletas de emoções e marcas. Os galhos e folhas secavam a olhos vistos e ela não compreendia.
Naquela noite, bem tarde, quando a casa estivesse mergulhada em silêncio, podaria os galhos e limparia as folhas secas. Mas, dias se passavam e ela deixava por conta do tempo. O que haveria de ser? Excesso de exposição ao sol... Talvez os exageros da chuva. De passagem, arrastou o vaso para a curva do pátio onde a sombra poderia abrigar as flores da luz frontal, deixando um rastro de terra preta no piso.
Era assim que lidava com a iminência da morte. Nunca soubera direito o que fazer com o fim das coisas. Tinha mania de eternidade. Ficava perdida, adiando as providências, as decisões, as atitudes. Era como se contasse sempre com o invisível para fazer por ela, o que rogava por seu único e insubstituível reconhecimento.
Os crisântemos a olhavam desalentados e ela os evitava. Mas sofria. Até que noite dessas, debaixo de um manto azul marinho bem escuro estendido sobre o infinito para enxugar o céu, pegou a tesoura de costura que nunca parava no mesmo lugar, e foi podar a planta agonizante. Agachou-se e passou a cortar os galhos esturricados e as folhas sofridas – dava dó cortar as flores. Parecia doença de dentro.
Seu fazer era desajeitado de todo, sem delicadeza. Tinha pressa em não ver as coisas assim. Era como se não acreditasse – e não acreditava, que pudesse ser fonte de socorro prestimoso, de auxílio proveitoso à vida ali em solvência. Fazia porque tinha dó, mas no cuidar sem crer punha toda a esperança de aprender.
Feita a poda, lembrou de revirar a terra em volta do serzinho frágil vestido de flores amarelas. Enfiou a tesoura longa pelas laterais do vaso afofando a terra preta enrijecida. Seria assim mesmo? Com a tesoura servia? Parecia-lhe mais uma agressão que um cuidado. Era assim que cuidava então?
A pressão no canto dos olhos anunciando o sono cutucava seus sentidos. Era tão tarde que a rua perdera o senso de viver. Olhou mais uma vez para os crisântemos desmilinguidos e quase pediu perdão a eles. Na verdade pediu. Por seu descaso, por sua ausência afetiva, por seus cuidados toscos, por sua falta de crer. Com os olhos pediu a eles que não morressem. Que lhe dessem mais uma chance.
Penalizava seu coração não mais ver o buquê amarelo colorindo o pátio. As delicadas pétalas finas e fartas projetadas para todos os lados como se fossem raios de pequenos sóis. Fechou a porta e carregou consigo aquele torpor que lhe ocorria sempre que se anunciava um pensar mais fundo sobre as coisas acontecidas. Chegara a hora de se encontrar com os adiamentos.
Caminhou até a varanda dos fundos da casa, olhou o quintal às escuras e deixou vir o choro represado. Não havia como contê-lo nessas horas. Tinha vida própria, ritmo acelerado e volúpia. Desmanchava suas defesas e desfazia a tinta das metáforas que ela pintava em torno de si mesma. Chorou ao Criador naquela noite... Não quero que eles morram... Não quero ser assim com as criaturas...
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Márcia Corrêa - http://novopapeldeseda.blogspot.com/
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quarta-feira, 21 de outubro de 2009
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As coisas morrem... e dão vida a outras.
ResponderExcluirSim amiga Márcia,
ResponderExcluiré assim a vida.
Abraços
Que texto bonito... muito sensível, muito delicado. Parabéns!
ResponderExcluirMari,
ResponderExcluirA Márcia é fera, deveria escrever mais.
Bjos