quarta-feira, 21 de outubro de 2009

SERTÃO D'ÁGUA - NO SARAU NA CASA DO POETA CAMARGO NETO

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continuação...




No sarau na casa do poeta Camargo Neto





Os presentes ouviam atentos as palavras elogiosas com que Camargo Neto falava dos convidados. No canto da sala, Dr. Artur conversava com Sena Tavares, do Instituto Histórico e Geográfico, ladeado pelo poeta Júlio Manoel e o escritor Sérvio Malta, contando os fatos apurados pelo seu jornal e confirmando o protesto que faziam diante do engodo montado pela intendência, bispado e pelo governo estadual.


No canto da sala dona Beviláquia quase em sussurros contava à comadre que a filha seguira para Manaus no começo da semana, acabado o resguardo e que graças a Deus não encontrou o filho da dona Lila. Foram meses de apreensão com medo do rapaz saber que Maria Isabel estava em Belém e a procurasse. Contava do genro, tão bom, tão distinto.

Dona Matilde, ao piano, executava a partitura que o marido lhe presenteara, sem se importar com a desatenção de alguns presentes. Desde que a tocara a primeira vez, era a preferida de seus convivas habituais. Agora, todos ali iriam conhecer o jovem compositor que tanto sucesso fazia.

Entre licores e vinho do porto, a reunião se animava com o poeta Camargo Neto, contando suas impressões da viagem que fizera, seu contato com o modernismo que tomava conta da poesia no velho mundo, o abandono da estética pelo conteúdo, o encadeamento da metáfora com a realidade popular. Contava ter visto nas artes em geral, música poesia, teatro, literatura e até na pintura, os artistas buscando essas novas formas. Fazia severa crítica ao jornalista da Província, pela primeira página do jornal naquele dia: os versos de dona Noemi, mesmo belos, não possuíam a contundência para sua manifestação. Haveria ele de conhecer o jovem poeta paulista, a quem homenageavam com aquela reunião, e lhe beber os versos. Havia de se deliciar com o jovem compositor e sua música, já famosa nas salas cariocas.

As horas se passavam e nada dos convidados. Camargo Neto, inquieto, sorria sem graça, justificando serem dois jovens muito excêntricos e talentosos de passagem rumo a Manaus. De certo algum motivo teriam para o atraso.

A Procissão da Transladação já vinha vindo, os convidados se juntaram na sacada em orações. O anfitrião pensava: um convite aceito com tanta cortesia e a desfeita daquele atraso... olhava o relógio quando o mensageiro chegou com o bilhete, onde se desculpavam pela ausência, estavam acamados no hotel com indisposição devido ao prato popular, paxicá, que haviam comido na véspera, no Arraial de Nazaré. Enviavam com suas desculpas o poema “ Cruzeiro do Norte” escrito naquela manhã e a partitura da peça “Quadrante Norte”, concluída naquela tarde.
Dona Matilde mal esperou a procissão passar e já estava executando a partitura no piano, para deleite de todos que riam da extravagância dos dois artistas, com aquela comida indigesta. O poeta Camargo Neto aguardou o término da execução para ler embevecido o poema:

Cruzeiro do norte

Estão lá
Sem simetria
Nem ereto
Nem deitado
O traço das estrelas
Esta nu
E crucifica o olhar
Que na noite
Quer o norte
São no quadrante
Luminosos pontos
Que entregam à noite
Seus sinais
Sem cruz
Que ensina os caminhos
Em gestos
De luz

O silêncio foi total. Por instantes ninguém se manifestou até que o anfitrião exclamou:

- É de fato um modernista, está aqui. Batendo na folha de papel.

A sala ficou ainda em silêncio, muitos não compreendiam. Sena Tavares se manifestava quase que ofendido; Dr. Artur sorria com o constrangimento no ar, imaginando alguma coisa, assim, no lugar dos poemas da sobrinha. Que reação provocaria no bispado e nos leitores?

As discussões tomaram conta do ambiente até a chegada inesperada do Dr. João Freitas, à procura de Dr. Artur com a notícia do Ver-o-Peso.

continua...


MQ
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