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continuação...
Zé do Tucano
Valei-me Padre Santo, foi o que primeiro pensou Zè do Tucano quando recobrou a consciência, quis se mexer e não conseguia, seu corpo era um torpor só. Sentiu foi a dormência nas pernas, nos braços amarrados, a boca repuxando pro lado, abriu os olhos, só enxergou água em volta; o sertão virou mar...?!
Um turbilhão invadiu seu pensamento. O corpo enrijecido contrafazia os movimentos que queria fazer, balançava com a marola. Sua consciência vinha e ia baldando, acompanhando o movimento. Caluta... Merina... Rema... rema... rema... Bité, lembrava tudo junto, era Sabá do Talho era Zé do Tucano. Misturava, Merina... Caluta... rema... rema... rema... o barulho das balas ricocheteando, rente a cabeça, as palhas ardendo, o fogo, a fumaça, o rosto do soldado que ele arrastava para tomar o uniforme.
Ouvia as palavras de Severo na última reunião da Guarda Católica, destacando quem ia furar o cerco e ajudar pela retaguarda do inimigo, atacando o comando das tropas e avariando a matadeira. Ouvia as palavras de Manel da Coroa, tu tem cabeça, Sabá....tu sabe neguciá ... Não conseguia mexer o corpo, as lembranças se misturavam sobrepondo as duas vidas com lampejos. Lembrou-se do Tucano onde nasceu, o pai morto de morte matada, a mãe enterrando filho por filho, seca por seca, até resolver seguir João Abade e o Beato.
Lembrou o Pau D’arco que fez nascer, o canto que ouviu quando lá chegou a primeira vez, entrando no igarapé. A consciência foi voltando no corpo dormente, endurecido pelo veneno, pervagando, a casa de taipa... o pau d’arco florido... mesmo antevendo a morte queria se soltar, contar a Merina quem era, falar da mãe, da procissão de Uauá, do santo Conselheiro, da guerra do Belo Monte.
O amor de Merina entrava pela vida que Zé do Tucano lembrava misturado com Caluta, a guerra... a guerra... agüenta Da Luz, foi cobra... foi cobra... deixa o menino com a gente dele... lambuza só nos prufano... Manel da Coroa num esquece a serra ... Zim... Zim... o balanço da montaria no corpo amarrado com transado, os dejetos escorrendo, a dor e o veneno correndo nas veias, desconforme.
A palha ardendo e ele atrás da tapera do Salobo esperando, já vestido de soldado, se misturar com eles. Passaram uns quatro, o último com uma bandeira na mão, quando o puxou para sangrar, sentiu aquela dor no rosto, nas costas, a escuridão foi adensando.
Dali um branco tomava conta e vinha pelo contar do tenente médico Dalfredo, sua inconsciência de quase ano... o Purus... os curumins afogados... sertão d’água... sertão d’água... Dotéia quero... quero... quero... caso com Caluta, mãe... ela quer... rema de proa, Bité... aprende Bité, evita o corcovo, menino, Dindinha ensinou escrevê e contá, Caluta; ensino ocê... vai fazê breu Dindinha... veneras, Caluta... reza... reza... reza... acode a igreja nova, Zé Preto... num morre Pichim, agüenta home de Deus...
Os benditos e ladainhas rezados por todos na igreja perpassando no meio da guerra... o alvitre do santo pai Conselheiro... corta a corda Bité... atira, atira Dalfredo... a matadeira estrugindo... desfalecia e acordava, sentia a baba escorrer, o balançar da canoa, o cheiro de vela, a voz do santo Conselheiro pregando na igreja velha, o cheiro da andiroba passada nos ferimentos por tanto tempo, Zinhá... Zinhá... suava, suava, desfalecia, sentindo o veneno roendo por dentro.
Viu os dois se entregando no barranco, lembrou Merina cheirando cravo e canela, lembrou Cabeção sangrando o soldado no barranco do Vaza-Barris quase seco. Tanto tudo no Pau d’Arco, no sertão d’água, tanto nada no sertão, rogai por nós, meu santo.
Os urubus no leito do rio... na vila... vamo interra ... no Curro... no Ver-o-Peso... Padre Santo... gente chegando, o Purus... corta o vapor, Adelmo... Belelo, dona Duca... Mããããe... mortos... tantos mortos... Quilimério explodindo atrás do tabique, Caluta num chora, corre pra igreja nova... muçu nucomo... muçu nucomo... panha a pixuna, Bité... sem munição Severo... vai no punhal Severo... Didoro, tu vem, é só um angelim, só a semana, traz Cimeu... tira as mulhé daí, o fogo vem cumendo pela rua do Brás... acode meu santo... serra direito Cimeu... Curiboque morreu...!? vamo arretirá as arma deles, amuntoa no beco... Zinhá... minha mãe... insídia, não vai Teço, corre... corre... alumia Rapinha, a vida vivendo na gente Rapinha...
O suadouro invadia o corpo e logo vinha o desfalecimento.
A maré levava a montaria de um lado pra outro da baía e na consciência que ia e vinha os lampejos de lembrar de suas vidas, a dor, um turbilhão latejava dentro da cabeça, vagando, vagava Zé do Tucano, vagava Sabá do Talho, tudo misturado, pungindo, ora sentente ora sentidor de bubuia no sertão d’água, até o banzeiro na frente do Ver-o-Peso.
Enxergava embaçado as velas dos igarités como fossem bandeiras vindo na frente de um batalhão de soldados estugados, o mar vai virar sertão...?! já virou sertão...!? sertão d’água... protege meu pai Conselheiro... num esforço sobre humano soltou uma das mãos, ofegando e, segurando a cruz feita pelo menino com ramas de mandioca sem livrar totalmente o braço, como se fosse um sabre segurado pelo corte, gritou com a voz tirada das entranhas e da alma:
- Viva Bom Jesus ... viva Antônio Conselheiro...
13 de Outubro
No primeiro movimento, o tenente Alvino engatilhou a arma, quando o ouviu bradar, atirou. Zé do Tucano recebeu a bala entre os olhos, findou ali. O Ver-o-Peso silenciou de repente. No ar somente os gritos lancinantes de Merina e, ao longe, o Pai Nosso que a procissão rezava, passando com a imagem de Nossa Senhora de Nazaré.
“... perdoai as nossas dívidas, assim como perdoamos os nossos devedores...”
FIM
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MQ
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sábado, 24 de outubro de 2009
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