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continuação...
A Província do Pará
Ranulfo, sentado na mesa do editor, rabiscava o papel, pensando no corpo quente da mulher que o esperava e irritado por ter sido chamado logo naquele dia, ainda mais por ter ficado a noite toda e estar ali, até aquela hora. Absorto em seus pensamentos, nem percebeu quando o cônego Gaudêncio entrou com o Dr. Artur. Sem graça, levantou da cadeira do patrão, cumprimentando. Ia sair quando foi convidado a ficar.
Em nome do bispado e da direção da festa, o religioso pedia que não dessem tanta importância àquela crendice de seres sobrenaturais e aparições, afinal era antevéspera do Círio e aquele assunto estava tendo um destaque inadequado, tão próximo à grande festa paraense. Dr. Artur olhava Ranulfo como se pedisse sua opinião, ao mesmo tempo em que se despedia do cônego.
- O que acha? Perguntou depois do religioso sair, confirmando o olhar.
Antes que respondesse, entrou Anísio com a notícia de um morto no Ver-o-Peso. Uma mulher atacada em Cotijuba e um boato sobre duas mortes na Vila do Pinheiro: uma moça e um umbandista. Contava que as autoridades já estavam tomando providências.
Dr. Artur ficou algum tempo pensativo, olhou cada um como se confirmasse sua decisão e começou dar as ordens:
- Primeira página. Mande chamar o Dr. João Freitas, temos que lidar com as autoridades. Quero uma frase bem forte, Ranulfo, vamos acabar com a concorrência, porque depois dessas mortes eles vão destacar os fatos.
Seu Anísio novamente não gostou do título que Ranulfo deu:
MORTE E ASSOMBRO
NO CÍRIO DE NAZARÉ
“São muitas as vítimas da visagem que espalha o pavor pela baía de Guajará. Foram confirmadas duas mortes, o estivador Raimundo de Souza, morador da Ilha do Combu, encontrado morto com os olhos esbugalhados, sem ferimentos dentro da canoa nas proximidades do Porto do Sal e o estudante não identificado, cujo corpo achado no porto do Ver-o-Peso pela filha da conhecida Tia Merença, já estava em estado de putrefação, aparentando marcas e ferimentos.
Na ilha de Cotijuba mais uma vítima quase fatal. A senhora Nazaré dos Anjos, esposa de Idelmar dos Anjos, conhecido pescador daquela ilha, foi atacada em plena luz do dia pela visagem que teria quase consumado o intercurso carnal, se não fosse a chegada dos pescadores que a socorreram. A vítima chegou a ver a visagem, mas se nega, traumatizada, a falar no assunto.
Na Vila do Pinheiro, foi confirmada a morte de uma jovem e de um dos mais conhecidos umbandistas de Belém, Pai Constâncio, cujo corpo mutilado foi enterrado junto com o da moça ainda não identificada, em uma cerimonia religiosa, sem que as autoridades tivessem conhecimento.
A lista de embarcações que encontraram a visagem cresce com o movimento de chegada dos fiéis para o Círio. Deles a informação de que muitas pessoas do interior desistiram de embarcar na última hora, com medo desse ser estranho.
Os fatos preocupam os organizadores do Círio de Nazaré e o bispado, que já solicitaram a intervenção das autoridades para apurar as mortes e não deixar o misticismo tirar o brilhantismo da festa de fé do povo paraense.
As autoridades mobilizadas destacaram guarnições de prontidão nos principais pontos da cidade e criaram uma comissão especial para coordenar as atividades comandadas pelo próprio intendente. Na capitania, duas alvarengas fortemente armadas foram destinadas ao patrulhamento da orla.”
Ranulfo ao chegar, a casa vazia e o bilhete em cima da petisqueira, aquela letra quase desenhada de Nora:
“Fui para a casa da tia, no Marco da Légua, não estou correndo como os outros de nenhuma assombração. Fique com seu patrão, com o jornal e com quem mais quiser, eu fico com o mel, mentiroso”.
Só aí Ranulfo se deu conta de que estava fora de casa fazia quase dois dias. Tomou um banho, trocou de roupa, disposto a ir até o Marco atrás de Nora. Ao sair de casa notou o movimento grande na rua e mudou o rumo para o jornal.
No jornal, seu Anísio tentava despachar dona Noemi, sobrinha do Dr. Artur, com suas estrofes para serem publicadas no domingo do Círio. Ranulfo passou, evitando que ela o visse e pedisse opinião, indo direto pra sala do patrão com a notícia de que o povo estava fugindo para o interior, as estações estavam todas cheias e tinha gente saindo da cidade de toda maneira, evitando a margem da baía e qualquer furo ou braço dela. Quem morava próximo de algum igarapé então, já tinha saído há muito.
Pedia ao patrão enviar alguém à Vila do Pinheiro, ao Marco da Légua, ao Porto do Sal, às estações. Ele se encarregaria do Ver-o-Peso e do necrotério. Dr. Artur prontamente foi atendendo o que Ranulfo ia pedindo; autorizou na hora e contou do grande amigo e poeta que chegou no navio americano. Decerto tinha visto alguma coisa, ele mesmo iria avistá-lo. Ranulfo saiu da redação rumo ao Ver-o-Peso, onde tinha certeza de encontrar outras informações.
Caminhava entre as pessoas, absorto, com o pensamento ora na mulher que o deixara, ora na balbúrdia que estava virando a cidade, quando viu e foi visto por Filó, pelos olhos e pelo corpo de Filó. Foi um encantamento. Visagem era ela! - pensou sem saber o que fazer quando ela falou:
- Contra inveja, meu mano, tu te resolve. Leva comigo-ninguém-pode, cipó-pucá e vence-tudo, tuma que é garantido de tia Merença.
Cheiro Verde se aproximou do colega que sorria pra Filó e, puxando-o pelo braço, perguntou o que ele sabia, dizendo ser a hora de deixarem as divergências e trocarem as informações que tinham.
Enquanto conversavam, Ranulfo não tirava os olhos de Filó que também não tirava os olhos dele. Cheiro Verde sentia sua importância chegar e pensava: tomei-lhe a mulher, agora vou tomar a fama - lembrou quando cruzou com ele na pensão da Florete no dia que conseguiu o emprego no jornal e foi festejar. Lembrou que olhava pra ele e pensava: - um dia vou ser mais famoso que tu, muito mais famoso.
Tanto um como o outro já sabiam da reunião na intendência, mas guardaram a informação. Na verdade, tudo que conversaram já era sabido pelos dois.
continua...
MQ
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sábado, 10 de outubro de 2009
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