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continuação...
No Arraial de Nazaré
Os dois faziam a alegria de seu Canduco. Era a barraca de maior movimento no arraial. Chegaram de manhã e dali não saíam, comendo e bebendo em meio à roda que se formava pra vê-los. O violão, não sabia de onde tinha vindo, mas agora corria a roda, quando parava nas mãos do músico carioca era aquela melodia refinada, coisa pra Teatro da Paz, pensava seu Canduco. Quando alguém interrompia com notícias da tal visagem, o poeta paulista anotava tudo em pedaços de papel, que ia enfiando no bolso da calça. De vez em quando, recitava um verso, também refinado para os ouvidos do barraqueiro. Parecia um pouco com as coisas dos batuqueiros do Reduto, mais despudorados, se é que entendia direito.
Sua filha desmanchava-se em atenções com o poeta que a distinguiu com um verso, mas ao declamá-lo, olhava mesmo era para a mulher do barraqueiro ao lado:
Há nos teus braços
Na precisão dos contornos
A pele da juventude
Sem nenhuma palidez
E o maternal delatado
Que olho com polidez
Há nos teus braços
Marcas de outros caminhos
Que te laçaram com avidez
E vestígios de um amor
Que o instinto quase desfez
Há nos teus braços
Todos os ângulos
Dos gestos lânguidos
Que tem o prazer
Há nos teus braços
O sensual desenho
De sol passeando
No horizonte das tardes
Há nos teus braços
Um pedaço de mim
Crucificado
Há nos teus braços
Solidão e intenções
Reparando, sem reparar
O abraço do meu olhar
Quando o poeta terminou de recitar, olhando pra ela, os curiosos até aplaudiram, todos sorriram até o marido.
Decorria o dia, a roda ia aumentando, atraindo quem passava. Os dois visitantes ouviam todos que quisessem tocar, aplaudindo, perguntando. De longe, parecia que aquele aglomerado de gente estava ouvindo alguma notícia da visagem mas, ao aproximar, encontravam o sarau ao ar livre.
Camargo Neto, o poeta maior, passava com um grupo de amigos bem na hora que alguém terminava de ler a “Elegia Curiaú” obra de João dos Gomes, poeta mameluco, conhecido apenas no Reduto e publicado graças ao empenho do jornalista Ranulfo, da Província do Pará.
Você o vento da noite
Eu o vento do dia
Ao amanhecer
Juntos nos canaviais
Vamos beber na fonte
Rodopiar por aí
Percorrer os matos
Você lembrando seu amor
Eu o meu
Vamos roubar o aroma
Das plantações de fumo
Fazer ondas nas águas
Assobiar por aí
Ao entardecer
Sentir saudades
Virar brisa
E cantar baixinho
Você lembrando seu amor
Eu o meu...
O autor, sentado entre o poeta paulista, e o músico e compositor carioca, sorria. Acompanhava a leitura, balbuciando os versos bebidos pelos dois novos amigos. O silêncio parecia perfumar o ar.
Camargo Neto parou e ficou apreciando a valsa tocada a seguir. O violonista com o charuto preso nos dedos da mão direita, tocava assim mesmo, com grande desenvoltura, dedicando aquela valsa ao autor da elegia.
Ao terminar, os aplausos ecoaram pelo arraial, atraindo ainda mais gente. Camargo Neto aproximou-se do grupo, apresentando-se e sendo também aplaudido. Conhecido que era, foi logo intimado a declamar “O sonho Cabano”, sua obra mais conhecida, sempre obrigatória pela pungência e modernidade dos versos, o que fez sem nenhum constrangimento.
Paneja a bandeira, cabano
Exorta bravura da luta
Trazendo lingada de sonhos
Em laivos de terra nova
Noutrora laço tisnado
Traição coragem refuta
Lobrigando os aleivosos
Vendendo nonada conduta
Oblitera dias de dono
O sumário das balas
Canhão que um corpo cala
No Vintismo conforme
Dobra as duzentas
E cinqüenta e seis
Bandeiras, cabano
No túmulo de cal
Sesmarias sementeiras
Das rústicas sementes
Libertas do desterro
Drogas do sertão
Ódios de porão
Corrente opressora
Aduzindo alvitre
Alarvia em sonhos
Algarviada cabana
Panejando a vontade
De liberdade sem tomo
Os aplausos foram intensos. João dos Gomes levantou-se para cumprimentar o poeta e, na emoção da hora, com a voz pequena e grave, sem a verve do colega começou a recitar no mesmo tema:
Raça desvalida
Que terra amou?
Seu cheiro de guerra
Em canto soou
Vem de onde vem
Acaso ou certeza
Disfarça contando
Encobre o sangue
Dissimula rezando
Diverso o gentio
Cativo vagou
Vermelho sangue
Calando ficou
A pele escura
Prisioneira chegou
O breu da chibata
A moeda pagou
O gume das facas
Penetra em vão
Onde tudo dá
Natural e são
O compositor carioca e o poeta paulista assistiam e aplaudiam Camargo Neto e João dos Gomes, abraçando-se emocionados. A música tomou conta daquele ponto do Arraial.
A valsa executada a seguir pelo compositor carioca, dizia ele, era parte da peça “ Quadrante Norte “ em fase final de composição. Ao começar a tocá-la, o poeta paulista levantou-se, declamando, como que saudando Camargo Neto e João dos Gomes:
Natureza em labor
Espalha rios, florestas
Em entrelaço
Vidas, entranhas
De espanto altivo
Em servidão
Conhecendo a riqueza pobre
De lâminas e arengas
Braços aprisionados
Em qualquer valia
Desordenando raças
Espalhando a riqueza pobre
Nas despensas abastadas
Dos brasões reluzentes
De feras que rezam
continua...
MQ
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segunda-feira, 5 de outubro de 2009
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