sexta-feira, 4 de setembro de 2009

SERTÃO D'ÁGUA - BITÉ

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Bité

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Desde então era a sombra de Sabá que lembrava quando ele chegou trazido por Merina, mirradinho, parecia um filhote de bicho qualquer, assustado, com um pixé pior que quando cortava cupiúba. Trazido pela tia pra tomar conta, criar até aparecer seu pai, irmão dela sumido na insistência de trabalhar com seringa no Xapuri, mandado avisar pelo Mauá que fazia a linha Belém-Boca do Acre e nunca encontrado.


Sorte dele, a mãe acabada na febre fazia pouco. Sorte de Sabá e Merina, viviam sozinhos naquela beira, afora a Criola, já velha demais, e o esperto do Zim, o menino trouxe alegria que faltava nas suas vidas.

Criola mal dando conta de imitar a fala de Manel da Coroa quando vinha gritando no longe.

- Tumei ancôro, meu mano. Criola repetia – tume côro memano... muçu nucomo... muçu nucomo...

Zim, esperto, ferroando com o olhar à distância, conferindo o desconfio do que ouvia antes de latir, esperto demais quando deixava ao jacamim a vigia miúda.


Com a vinda do menino Bité, mesmo calado, era a companhia que faltava a Sabá e Merina; foi crescendo e dando conta das pequenas coisas que o tio ensinava, era muito curioso, e gostava de aprender.

Criola não saía do em volta de Merina. As duas conversavam o dia inteiro na cozinha, pegadio de gente parecia Criola ter, gostava de chamar Bité por qualquer coisa:

- Crumim Bité... crumim Bité... crumim Bité... muçum nucomo... muçu nucomo... muçu nucomo...

Zim já ia virando um cachorro velho, quase cego correndo atrás de visagens pelas touceiras dos açaizeiros e pupunheiras, latindo por qualquer coisa, até com o jacamim que não saía do terreiro.


Dependesse de Zim era só guarnecer o sono na rede com o sono dele debaixo. Nem Bité, depois de quase ano chegava perto sem que Zim rosnasse contraindo os cantos da boca como se desse conta daquela brabeza, Sabá, na rede, dormia sossegado.


Bité aprendeu depressa os modos e foi de valia desde o dia que chegou. Seu pai ninguém encontrou no Acre, as notícias meio desencontradas o davam como morto, a sezão também andava por lá. O menino foi ficando com seu jeito calado aprendendo até os gestos de Sabá. Aprendeu a talhadia, a empilhar as achas no tamanho certo duma talha, a forrar o ombro com a malva pra não esfolar; aprendeu ajudar a fazer a tapagem, a negociar com Manel da Coroa, Capitão Mariozinho e quem mais parasse.

Só o curioso falava na boca de Bité, perguntava pra Merina.

- Puquê acendê lume de dia cumo no veloro da mãe? Lumia caminho de quem murre! Luminou da mãe, tia ? Puquê eles num fala, tia? Num trabaia no mato? Num vai gapuiar igual Batuco, tia?

Já sabiam suas mãos, onde firmar o remo, sabia o olhar tirar rumo pela quilha da montaria, bambolear pra tirar água como se fosse um urubu trocando o pé de apoio, igual fazia o tio. Era muito inteligente o menino e ao mesmo tempo arredio e desconfiado. Puxado da mãe, dizia Merina.


Quando o irmão trabalhou no governo, conheceu na aldeia Anambé, no Moju, o Mário Pau que tirava lenha lá e tinha uma filha com uma cunhã da aldeia. A mãe de Bité era a filha do Mário Pau que morreu afogado faz tempo.

- Coitado do mano, a mulher foi o xodó dele, gostava tanto mas não podia agüentar a parentalha dela vivendo às custas, ainda mais quando deixou o governo, dizia Merina.

Bité curioso, um dia foi atrás dos parentes agregados, seguindo de longe, se escondendo no mato até a choça, morada deles no Acaraqui, e os viu enrolar o tauari e cantar invocando Caruana. Ficou de longe assistindo à pajelança, lembrou-se daquele canto:

- Rhum... rhum... ê... rhum... rhum... ê... nhanga... nhanga... nhanga... ê... rhum... rhum... ê... rhum... ê... nhanga... nhanga... nhanga... ê... ê... ê... nhã... nhã... nhã... ê... ê... ê... o mesmo que ouvia no Anambé, lembrou-se da mãe, do xerimbabo dançando igual à avó, e da aldeia.

Os tapuios viram Bité espreitando e, calados como eram, continuaram. Com o olhar estabeleceram uma cumplicidade com o menino quando vinham ao Pau d’Arco.


Merina achou natural no começo mas, com o passar do tempo, notava que Bité ficava horas fora das vistas dela, pensava estar ele embrenhado no mato com o tio, mas um dia Sabá voltou mais cedo sem ele. Bité nunca falou aos tios que andava no mucruará com os parentes. A tia quis confirmar e um dia, depois de prover os tapuios, não viu o sobrinho. Seguiu e presenciou o aprendizado que Bité fazia com o casal Anambé. De Sabá escondeu até que ele mesmo puxou o assunto, tinha visto Bité acompanhar os tapuios, disse não desgostar que o menino aprendesse com a gente dele também. Merina ficou calada sem se conformar, imaginando um jeito de contrariar o marido.

- Tu queres ir no Círio esse ano com a tia, Bité? Perguntou Merina enquanto desamarrava o cofo, querendo tirar o menino daquela convivência. Ele balançou a cabeça que não e correu pra junto do tio no manival.

Ficou arredio os dias todos, próximo a semana da viagem, ele a evitava indo com Sabá pro mato ficando o dia todo como não era de costume fazer.

- Bité vem passar mutamba no cabelo da tia...

Ele fingia que não ouvia, desaparecia com a cabeça baixa ignorando Merina, ficava horas sem aparecer.


No dia que a tia embarcou, Manel da Coroa conversou reservado com Sabá e Merina contou que não ia sobrar ninguém no Maraçu, a sezão tomou conta entonada... febre muita... febre muita... febre muita, contou também que o Capitão Mariozinho tinha cruzado com ele e lhe dissera não ter notícias firmadas do pai do menino.

Bité, vendo os três conversando baixinho, desconfiou. A tia insistiu em levá-lo, medo da febre relatada por Manel, tentativa de afastá-lo dos tapuios. Bité saiu correndo pelo mato e só voltou quando o igarité soltava vela e fazia a curva pra entrar na baía. O tio, quando ele voltou, ralhou:

- Tume jeito, Bité. Que pavulagem é essa? Se tu num qué, tu num vai, tume jeito.

No entendimento de Sabá - que cada um é cada um - o menino também podia escolher. Não era como ele que não sabia nada do antes, parecia derriço da vida o não lembrar que já se acostumara. Não queria ver o menino do mesmo jeito, que ele aprendesse um pouco com os tapuios. Bité não tinha preguiça, não ia ficar alheado igual à gente dele.


Naquela madrugada, quase amanhecendo, Bité acordou o tio, assustado com o barulho no terreiro e com o rosnar sonolento de Zim. Pelo fusco do dia, aquele zumbido de possança da taoca ia enervando pelos ouvidos e pelando o manival. Até a Criola gritava no puleiro:

- Mitiga sámerinda... mitiga sámerinda... muçu nucomo... muçu nucomo...

Junto, o acesume do japu na pupunheira irritava. Zim latia... latia... chamando Bité, de baladeira na mão, meio sonolento, não acertava nunca o japu.


Era o dia começando no café ralo que Sabá fazia, enervado com as taocas e com a Criola que desassossegava com a falta de Merina, falava destrambelhada:

- Muçu nucomo... muçu nucomo... muçu nucomo... pexe mutu... pexe mutu... pexe mutu...

Naqueles dias, Sabá ficava sem a mulher e os companheiros. Iam todos para a festa do Círio. Ele aproveitava pra limpar mais um pedaço pro manival novo que nunca achava tempo de fazer; esperava o Guajará de vinda e arrumava pequenas coisas, modo não se afastar muito.


Já tinha passado Cimeu e Didoro com as famílias, Cleodon do Marauatá, Didico do Urubueua, até Saluciana e o povo da Vila do Beja, dava notícia Bité, cada um que passava, ele corria pra contar.

Mandava o menino voltar pro trapiche, contasse depois quem passava.

- Bité, tu fica! Tu cuida do Zim e da Criola, só quando tu vê o Guajará vem chamá.


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MQ
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