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continuação...
Ver-o-Peso
No Ver-o-Peso, contava Zé Calendário pra Norato:
- Se tu visse, meu mano...! foi na vazante, tumei susto. A montaria parou de proa pedindo peagem, ali... ali... ali... bem de testa. Uma luz forte alumiava a visagem vinda de dentro d’água. Dei um grito: Senhora de Nazaré, valei-me! Soltei vela, virei leme e olhei pro contrário, rezando até atracar.
- Mano, tu tá cum pavulagem.
Do lado, passando, Filó ouviu pelo meio a conversa e parou pra perguntar o que era. Quando contaram, ela ficou muito séria, e disse ter ouvido o mesmo caso na boca de Manel da Coroa que parava no Porto do Sal.
- Na costa um manto vermelho, vinha de bubuia, rudeado de luz, num foi, mana? Falando pra colega que ia junto.
Norato puxou o beiço da rede onde Chicão cochilava, perguntando:
- Tu também viu? Conta o que tu viu.
Chicão relatou que um vulto de capa numa montaria batendo casco, eristando o murumuru, na dobra do Urubueua; pensou que era um caboclo panhando cacho, só olhou de relance.
Tia Merença ensinava ao garapeiro o banho de casca de taperebá maduro, casca de cajuaçu e jupindá, mas a atenção mesmo estava na confusão que via formar. Os carregadores rareando, e aquele um tanto de gente em volta do Zé Calendário:
- Tu deixa descansar na água fresca depois banha, instruía olhando para o lado contrario ao do freguês, curiosa, enxergando a filha no meio daquela multidão.
- Tume de conta mano, pediu ao vizinho. E foi saber o que era que estava acontecendo. Num segundo já gritava espalhando em roda as pessoas: - tumém vi esse um... saindo dali... e apontou o necrotério – rubou a canoa do Calixto da Donana, axi!
- Tá variando, mea tia? - gritou alguém.
O tumulto se formou. A partir daquele momento, todos no Ver-o-Peso já tinham visto a visagem, para cada um o ser era de um jeito. Havia quem dissesse que estava vestido com um manto de luz, outros que se olhasse firme pra ela ficava cego; uns falavam que era envolta numa colcha de mururés que soltavam luz. Falavam de ela sair pelas ruas, à noite, igual ao boto seduzindo as mulheres.
- Tranca a tua, Almino - gritou alguém.
Havia os que a tinham ouvido gemer igual ao urutaí; os que viram a canoa ser puxada por dois botos tocados na muxinga. Uns falavam mais de uma, eram como uma tribo.
- Mea tia nhá Merança, tumei... tumei... tumei... e nada de cortá, dizia o freguês.
- Manezim da Tatuoca tumém viu, mea tia, falava Dimo, vizinho de barraca.
- Tu dêxa de lesera, aquele mano! e respondendo ao freguês: - vai cortá sim, tuma mais tudo dia que corta - e voltando a discutir com o vizinho: - só vê o que já foi visto. É leso igual tu.
- Mea tia Merança, agora deu pra querê ofendê até os culega, tu parece urubu cuíca... axi!
Merença era conhecida como puçangueira por todos, difícil alguém que nunca tivesse encostado na barraca dela no Ver-o-Peso atrás de um lenitivo, uma meizinha, um chá que fosse. Ao mesmo tempo, era a mais incrédula. Essa história de visagem, achava, era alguma tapeação. Fosse um ente, ela saberia, era acostumada a lidar com os profundos, curar com elementos, saberes, não só com plantas, raízes e ervas.
Filó era única filha e continuava nos modos da mãe já derreada pelos anos. Tamanha mulher nova, bonita demais! Mundiava qualquer um que gostasse, era só firmar o querer. Onde passasse, ninguém lhe tirava o olho. Juntava com a fama da mãe a boniteza, e mantinha o tenente Alvino sempre querendo situação. Mas o querer dela era outro e queria do jeito que ele quisesse: era Ranulfo, o jornalista da Província. Queria de longe, nunca se aproximara dele; só tinha visto umas vezes entrando no prédio do jornal, mas o dia que pudesse chegar perto, ele ia querê-la, tinha certeza.
Filó aparentava também não acreditar. Aquela confusão no Ver-o-Peso, logo de manhã lhe dava um pouco de medo, arrepiava. Mas gostava do movimento, era o que ela mais gostava. Quem sabe o jornalista não aparecia lá?
continua...
MQ
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quarta-feira, 23 de setembro de 2009
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