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continuação...
Porto do Sal
O Porto do Sal estava diferente naquela manhã, um ajuntamento de gente em volta de Manel da Coroa que contava o que viu, cruzando rente à quilha do Coroa de Prata, na madrugada quando passava pelo furo do Cirino. Em volta todos, em silêncio, prestavam atenção na descrição que ele fazia: muitos pontos alumiados dentro d’água, guarnecendo a montaria que conduzia a visagem e rodava no meio da luz, rodava rápido com a vela que saía do próprio corpo, enfunada de mil ventos. Um chapéu grande tampava o rosto esverdeado e um manto a vestia toda. A luz era tanta que turvava a vista. Ele nunca vira nada igual na vida toda, navegando na baía, nem nas duas viagens que fez pra Manaus.
Em volta juntavam carregadores, encarregados, e os passageiros do gaiola São Gabriel que acabara de atracar. Muitos passageiros afirmavam ter visto de longe a canoa com alguém remando com o manto de luz sobre as águas, um ente muito alto parecendo gente do estrangeiro. Um menino agarrado nas pernas da mãe acrescentou:
- Cuspia fogo toda hora, cuspia... cuspia... cuspia...
Outro passageiro, aproveitando o que já ouvira:
- Também vi o fogo, cada cuspida acendia uma luz na água.
Todas as embarcações que aportaram ali, naquela manhã, davam notícias daquela visagem enorme bordejando, ora de um lado, ora de outro, muito veloz, espalhando bolas de fogo que não se apagavam na água. Uns falavam num grito rouco que ela fazia ao expelir o fogo pela boca.
Logo chegaram notícias de que a mesma visão foi vista por muita gente que chegou ao Ver-o-Peso. Ela quase pegou Zé Calendário. Por lá a confusão era até maior. Falavam até que não era uma só, e sim muitas, uma tribo inteira e que iriam atacar Belém.
No Labrador o movimento pegou seu Duca desprevenido, nunca tinha vendido tanto vinho quinado e aguardente. Os carregadores se misturavam com os passageiros desembarcados das gaiolas, bebendo e ouvindo o relato de quem tinha visto a visagem. Num canto, o pescador contava que ela veio pra cima da vigilenga, jogando bolas de fogo e num pouco tempo sumiu no breu largando fumaça. Noutro canto, o passageiro falava dela ziguezagueando ora de proa, ora de popa, fazendo ronco de esturro de onça.
Raimundico descarregava, no Ararirá de Maués, peles de borracha e castanha quando viu o Capitão mandar chamar o sargento Ozias. Os dois ficaram muito tempo conversando na cabine. Alguma coisa estava de verdade acontecendo, deduziu o carregador assombrado com tudo que ouviu contar e vendo o brigadiano sair com o comandante. Os dois gesticulando muito, examinando o casco do Ararirá, chamando o imediato do outro vapor e seguindo os três para a proa. O que queria era logo terminar a tarefa e sair dali, seu medo do assombrado era sabido por todos. Morava no Combu, não queria saber de atravessar fora de hora, ainda mais na minguante que punha o escuro na noite.
Quando lhe perguntaram se tinha ouvido o que Manel da Coroa contou, fizeram-no com muito respeito. Raimundico era um carregador muito conhecido no Porto do Sal, pela força que tinha retida nos braços, acostumados a descarregar toneladas num só dia, famoso também por não tolerar nenhum desaforo, destemido em brigas e confusões. Mas, quando o assunto era o sobrenatural, ele nem ficava perto, tinha verdadeiro pavor.
Era o que sentia naquela hora, desamarrando a montaria, depois do gole de cachaça com quinado tomado às pressas no Labrador, um verdadeiro pavor. De tão afobado, quando viu o corpo de bubuia na entrada do furo, escorregou o pé de apoio, ao mesmo tempo que sentiu a dor no peito e a falta de ar, chamou por todos os santos de sua devoção, perdendo as forças, caindo sem conseguir ao menos gritar.
Foi encontrado com os olhos bem abertos, morto de susto, dentro da canoa enganchada numa raiz na saída do furo.
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continua...
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MQ
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segunda-feira, 21 de setembro de 2009
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