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continuação...
Guajará do Xapuri
- Quando embarquei, não sei se por causa da pressa ou da ressaca que acordou comigo naquela manhã, nem notei que ela e o marido embarcaram também. Só percebi quando o vapor parou em Santo Antônio para se abastecer de lenha e, como de hábito, desci para espairecer, pude vê-la na segunda janela da primeira classe. Olhou-me de relance, sem firmar as vistas. Meu coração bateu mais depressa que o normal. Mas acabei tenso quando vi o marido sobrepondo o rosto na janela. Ele sim, me olhou firme dos pés a cabeça como se soubesse de tudo, o que era impossível, a menos que ela tivesse contado e me apontado na rua, o que era pouco provável. Mas, embarquei no primeiro apito como que fugindo daquele olhar que me deixou intrigado. Só o conhecia de vista, ouvira dizer que era de Manaus, filho de políticos influentes e muito ricos.
- O resto da viagem passei no convés da segunda classe sem coragem de andar pelo navio, medo de encontrá-la, receio de vê-la de perto. Talvez receasse também o olhar do marido perscrutando meus pensamentos.
- Foi numa viagem como aquela, num escurecer como aquele, quase um ano atrás, com o vento assobiando nos meus ouvidos, fui lembrando... aquela carta – acabou como a fumaça de um cigarro, esvaiu... Enquanto assimilava aquelas palavras, observava a fumaça do cigarro desenhando o ar que o sol, pela fresta, riscava em cima da cama do meu quarto de estudante e poeta. Fiquei ali fumando um cigarro atrás do outro até a decisão de querer ouvir de sua boca, olhando nos seus olhos, que o amor se esvaíra. Como? E a distância produzindo aquela saudade louca de um amor sementado cada dia, dia a dia, nas suas cartas, nas minhas cartas e poemas. Como? Menos de um mês, falava do seu sofrimento, da minha ausência, contava os dias que faltavam para o fim do ano. Como? Fumaça se esvaindo, não podia acreditar naquilo.
- Minha vida parecia que começava daquele ponto, uma angústia se instalava por dentro, roendo. Na viagem toda não falei uma palavra com ninguém. De dia, ia ao convés e o frio da noite me escondia. Um cigarro atrás do outro, os pensamentos seguidos daquela frase: - acabou como fumaça de cigarro, esvaiu... O menino vinha oferecendo a laranja – tu não fala, é mudo... aceita... eu balançava a cabeça que não, ele insistia até a mãe chamá-lo: - pára de incomodar o moço, menino!
- Por que tinha que encontrá-la assim, ainda mais no vapor, uma viagem igual a de um ano atrás, indo em busca de uma explicação para aquela carta? Era como se cortasse de novo por cima da cicatriz. Ouvia o apito ressoando na lembrança, quando me dei conta de que havia bem no fundo uma dor restada sem lenimento. Aquele ano todo tentando encontrá-la para ouvir de seus olhos as palavras vagas daquela carta. Quantos sonetos enviados aos jornais na esperança de que eles os publicassem e ela os lesse. Agora, um lance de escada e o marido apenas nos separava... não mais sua família inteira, não mais o silêncio de Eleonor se interpondo entre nós. Agora, nem que fosse um derradeiro adeus ela me daria, uma palavra muda no olhar que fosse.
- Quando abri a porta, o marido dormia recostado com a cabeça em seu ombro. Ela olhava, com ternura, para a criança que lhe tinha o seio direito e sorria. A beleza que vi continha uma tristeza que latejava, sem dor, dentro de mim. Um vazio encheu minhas lembranças. Voltei sem que fosse visto e deixei as palavras daquela carta se esvaírem como fumaça, deixei que o amor acabasse ali, meu último verso, o gesto verdadeiro de um amor terminando. Fumei um cigarro rodeado de imensidão e silêncio, olhei as estrelas, o luar prateando as águas e, da amurada, joguei-me para a morte.
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continua...
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quinta-feira, 10 de setembro de 2009
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