quinta-feira, 17 de setembro de 2009

SERTÃO D'ÁGUA

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continuação...
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O enterro

Dali nunca saíra, essa era a primeira vez, com o tio naquele estado, um aranhol d’água depois da curva, conhecido de cabeça baixa, remando, rumando sabia lá pra onde. Sabá calou, quietou seco, sentado na cadeira com o couro do assento comido pelo tempo, vazando um escorrido, o remo avivando os calos das mãos do menino, o destempero vigorando na pressa de remar, naquele mais de meio dia sem cruzar ninguém. Onde estava o Guajará? Onde ficava o Curupaçu? Onde chegar com a febre do tio comendo pela ferida da perna cingida com laços de cipó.

Na cabeça de Bité, os pensamentos misturavam-se desde que o vira chegar arrastando a perna picada, pedindo entrecasca moída de trapiá com sal e água pra beber e passar na ferida. - Foi surucucu Bité? – Tu conhece trapiá Bité?... perguntava Sabá. O menino balançou a cabeça, carregando o tio pra montaria sem um lenitivo, um chá. Sabá pedia levá-lo para recurso.

- Tu pega a montaria... não cabe deitado? Traz a cadeira, me amarra nela... e ela na canoa... o chapéu menino... rema, rema depressa, rema pro Curupaçu, Cirino tem remédio lá.

Remando de contra, na maré enchendo, remando sem conhecer rumo. O tio quieto, desfalecido, os calos queimando as mãos, era só aquela imensidão d’água... a noite já querendo rodear o dia e nada do furo do Cirino... maré contra, água puxando pra trás, o tio quieto.

À noite, pensava o menino, uma luz hei de ver, seja onde for, encosto lá. A noite veio e nenhuma luz apontou. Era a imensidão, o breu dominando. Resolveu parar na margem, dar pelo menos água ao tio. Quando aproximou a cuia, pareceu que ele já tinha morrido fazia muito. O que levava, maré contra, era um corpo amarrado, sem vida na cadeira.

Nessa hora deu desespero. Sozinho, tirando água da montaria sem saber pra onde remar, a quanto tempo estava do furo do Cirino, qual canal? Enterrava o tio ou não? Resolveu esperar a preamar. O medo foi tomando conta de Bité, medo do lugar, daquele barulho de bicho se coçando na raiz da paxiúba, da jacina batendo asas rente ao rosto e o medo maior de nunca conseguir chegar a lugar nenhum.

De cócoras, no barranco, com a montaria presa na raiz, de vez em quando via o tio mexer com o balanço da marola, assustava. Pensava em jogá-lo na água, queria voltar, mas não sabia voltar. Aquele céu enorme cheio de estrelas, o rio sustinha a canoa entalhada pelas próprias mãos do morto sentado, solene como se percorresse seus domínios pela última vez. Ao menino restava, sem entender direito, aquelas últimas horas, a falta de rumo, a febre de Sabá. Foi quando viu uma luz piscar. Marcou o lugar e remou o mais depressa que pôde.

Quanto mais remava, mais parecia que a luz ia distanciando. Deduziu ser o Guajará ou outro barco qualquer. Quando deu fé estava voltando. Avistou o pau d’arco florido na curva, brilhando ao luar. Voltou pra casa e resolveu soltar a montaria para que o tio achasse sozinho onde chegar. Era como se o enterrasse; aquele ser tão d’água, naquele sertão d’água, lugar de nascer, de viver e de morrer, como ele mesmo dizia. Fez uma cruz de ramas de mandioca imitando o crucifixo que vira nas mãos da mãe quando foi enterrada, enfiou por entre as cordas que amarravam Sabá na cadeira, acendeu uma lamparina dentro da canoa, outra dentro da cuia que soltou na água para abrir os caminhos, em seguida cortou os punhos da rede do tio sob o olhar triste de Zim que rosnava baixinho como se entendesse tudo que se passava ali.

Com a rede transformada em mortalha, cobriu os ombros do morto, desamarrou a canoa que foi rodando devagar com o repuxo da maré vazando. Acendeu mais uma lamparina dentro de outra cuia, soltou atrás da urna-montaria que rodopiava, pra fechar os caminhos... a canoa ia de bubuia, bem devagar.

Ficaram o menino e o cachorro no barranco, naquela beira, sem lágrimas, seguindo até onde a vista viu, na imensidão, as três pequenas chamas acompanhando Sabá, sentado solene com sua mortalha embrulhando o corpo meio curvado, soberano na cadeira que a montaria harmonizava, ao girar, com o silêncio que se formava seguindo o cortejo.

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MQ
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continua...

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2 comentários:

  1. Sertão d'água é uma viagem as nossas raízes e entranhas.

    Difícil é dá uma olhadinha e não (re)lê ...rs

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  2. É sim Edilene. Parece um roteiro de cinema, né.

    Abração.

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