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O senhor sabe que eu sou assim, jitinha assim, mas já uso sutién?! Sim, que logo já quero ser mamãe. Mamãe usa sutién e tem peitão. Então eu penso que, se eu desejar com firmeza e usar sutién, assim ligeiro vou ter peitinho e poder ter neném. Aí vou cuidar dele bem direitinho, que já sei. Vou segurar o neném assim forte abraçada e fazer ele dormir e parar de chorar.
Eu moro numa casa nova agora, que a que eu morava foi pro fundo no lanço da maré. Aí papai deixou ela que foi só ali, toda escangalhada e construiu outra, agora mais para dentro da terra firme, com o quintal cheio de bois, que dá até de montar neles e passear pelo campo.
Eu tenho um quarto só meu, bem do lado do quarto do maninho. Eu tenho uma janela bem grande, que vejo a vila toda. É muito bom, dá de ventar e de espiar tudo o que acontece no trapiche. Vejo o comprido do igarapé, o porto, as pessoas que chegam e até o campo de futebol do outro lado do rio. É lá que papai e todos os ômi da vila vão toda tarde jogar bola, depois de chegar do roçado.
Maninho também jogava bola ali. Antes dele ir embora. Triste que foi, Maninho sumindo no rio e eu gritando sem poder fazer nada. Eu chamava Maninho e ele não ouvia e papai não chegava. E eu gritava, gritava e achava que ele ainda ia ouvir e voltar do fundo do rio.
Ele, Maninho, nadava tão bem! Quando papai ia levar a gente prá lancha, Maninho que pegava o bote. E ele agarrava o nó lá no fundo do igarapé, ficava até quase dois minutos prá baixo da água. E eu esperava na beira, certa que ele ia conseguir voltar para pegar ar e trazer o bote, sem o nozinho. Minhas amigas todas ficavam de mirando o Maninho e eu pulava e dançava de orgulho e de feliz que Maninho sempre conseguia. Desta vez, ele não conseguiu e não voltou. Mas mamãe me disse que ele fez é nadar direto para o céu e que ele sempre vai vir visitar a gente para matar a saudade.
Aí toda noite eu rezo. Pro Maninho vir me dar um abraço. Eh, mas que tô com uma raiva dele, que nunca veio me abraçar! E já foi abraçar mamãe, que ela me contou. De mim, só vi um dia uma luz bem forte, que eu achei que era Jesus. E quando eu olhei bem direto para ela, ela desapareceu. Eu penso: vai ver que era Jesus ou o Maninho, que estava tentando vir me abraçar, mas não consegue. Então tô torcendo prá ele vir me abraçar do mesmo jeito que torcia para ele voltar prá beira do igarapé. E fico torcendo até dormir e sonhar com um montão de coisas, que não consigo lembrar.
Ei, senhor, embora lá, que quero aprender aquela pirueta que o senhor fez ontem com a gente. Vai, vamu! Depois, conto mais. Eh, ah, ufa! Isto dá é espanto, senhor. Mas agora faz daquele jeito torcido, vai, faz mais, por favor?!Ei, isto aí que o senhor faz, as piruetas, eu peço que faça também com o Miguelzinho, que é muito gaiato. Ele vai aprender rápido, danado de macaquice. O senhor sabe o que se deu com ele?! Aquelas marcas todas nas costas dele, a casa dele foi que pegou fogo! E ele não saiu a tempo. Se queimou tudinho. Mas ele era bem miudinho, foi crescendo e as marcas tão afrouxando, para sumindo tomara Deus. Agora ele fica dizendo para todo mundo que quer ser bombeiro.
A mãe do Miguelzinho foi embora, deixou ele só com o pai e com a avó. Eles ralham bem com ele. Também, o Miguelzinho é muito malino, apronta demais. Se ele pedir para o senhor a palavra pop, dê cá seu shorts, que eu vou escrever ela-palavra. Pois, se ele pedir pop e o senhor não tiver escrito em nenhum lugar, o senhor vai ter que pagar um bom-bom para ele. E o Miguelzinho é bem chato, fica é te cobrando e num para de pedir tudo que vê pela frente. O senhor que dê corda para ele: ele não pára mais e vai grudando firme que nem carrapato.
O Miguelzinho era amigo do Maninho, tem foto, quer ver? Mamãe e papai te mostram o quarto dele e o armário que fizeram com todas as coisinhas do Maninho, titicas. Eles gostam, de sentir honra, de lembrar do Maninho. Modo de dizer, que o senhor vai ver e se d´mirar com o barquinho que ele fez um dia antes de ir embora. E as roupinhas todas dele, que ficam guardadas em volta das fotos suas, umas com os amiguinhos e outras de roupa de posar prá foto, de shortinho e camiseta.
Lembro agora dos ômi graúdo mergulhando que era a comunidade inteirinha, descendo pros fundos do rio atrás do corpinho do Maninho. E nisso foi mais de hora. E tia Sandra gritava: -Calma, que é outro que vai morrer!. Ai, meu Deus, todo o desespero do mundo!
Choramos Maninho foi um mês todo dia e noite. Mas papai chorou mais, de modo diferente. O choro dele era de modo sem lágrimas, era meio oco, sei não, papai não conversava direito e esquecia de tudo. Foi que, tudo estranho. Depois veio aquele dia da pororoca. Quatro meses depois. Tia Sandra sabe bem, mas não diz não. Depois da pororoca ficou mais cabrêra, modo de chegar menos perto. Aquela pororoca que virou o barco de papai umas quinze vezes, de certo sabe o senhor. E eu tava lá, que vi papai ficar dentro do barco, que girava, tacando as crianças jitinhas tudo afora pela janela da lancha, salvando todas elas. Eu sentindo bem dentro um orgulho forte de papai, mesmo que sentia de Maninho.
Antes eu tinha era raiva de papai, porque que ele tinha deixado o Maninho morrer?! Depois da pororoca senti mais menos, até acabar. Acabou de vez. Agora amo papai, que sei que ele vai me salvar toda vez que eu precisar. Papai sabe de tudo, sabe o senhor?! Ele entende do mato e dos nomes tudinhos das árvores, dos peixes e das caças. Tem vez que papai entra no mato e fica é três dias para pescar e caçar. Lá ele arruma o de comer e beber. Aí ele volta com um mundo de caça, que é paca, veado, tatu, jabuti, marreco, tudo prá gente comer depois da mamãe limpar, ficando demais de boa.
Aí o pai junta a gente e conta o sucedido com ele e com os amigos dele, os rio-beirinhos para aí debaixo. Caso seu, foi que encontrou um boi todo escangalhado, mas cortado feito gente-homem que tivesse agido. A carne tava era cortada mesmo no lugar certo. Mas tinha perto as pegadas da onça, o pai sabe bem dizer.
Foi que então, o pai e os amigos conhecem bem o mato, num era de espanto se a onça voltasse, que sempre ela volta prá devorar a carne morrida. Pai e os amigos então esperaram foi é pra mais de seis horas, quando a onça voltou, boca da noite. Veio sorrateira, barulho não fez, pois onça lambe as patas e anda com as folhas do mato pegadas, motivo de silêncio. O pai e os amigos souberam dela pelo cheiro. De morte. E foi que atiraram nela os quatro, os quatro: pai, Zé Cachaça, Idalino e seu Quinlhão. A onça, ligeira, nem sentiu o trisco das balas, sumindo pro mato. Pai e os três outros saíram atrás dela.
O senhor sabe que onça se esconde em tronco de Samaúma?! E foi assim que ela procedeu. Os quatro então deram de desferir golpes com terçado, ticando, de fora prá dentro, na toca da Samaúma. A onça mostrou que era mais ligeira e, mexendo dentro da toca, nem relou na faca do facão. Foi que, por medo de bote maior da onça, que Seu Quinlhão arrazoou de atirar com o rifle prá dentro da toca. E popocou mais de cinco tiros até começar a sair sangue pelos cortes do terçado. Era sangue e grito de onça, que demorou tempo. Ficaram lá, então, os amigos todos de espreita até o sem-sinal da vida da onça. Disse o papai que o couro do gato ficou com o Seu Quinlhão, que levou para casa sua na Vila Progresso.
Sim, todo o tempo do mundo eu penso em papai e no Maninho. Mas penso também na Isabela, que acho que ela é bonita demais. E acho que é ela que é que vai de primeiro ser mamãe aqui na vila. E penso também em minha mãezinha, que é prima de papai. Tem gente que fala que não pode casarem primos. Que dá é filho com problema. Mas, espia aí, tenho problema nenhum não, senhor. E penso também que meu cabelo é bem bonito. Gosto de passar o pente nele, tirar aqueles nós tudo que se faz no vento daqui da beira. Que é lá que a gente joga bola e brinca com a Sofia.
A Sofia é a capivara que mora lá na casa do Seu Pedro. Ela é danada, sim senhor. Corre atrás de bola no jogo de futebol, nada no rio com as pessoas e atrás das canoas que saem para pescar. A Sofia deixa a gente até pôr o dedo na boca dela e fica mamando que nem mamadeira. O Miguelzinho, isto eu num gosto, num é certo não senhor, sempre bate na Sofia, motivo de malino que ele é. Ele bate até no Jitão, o boi preto que vive atrás da casa do Julinho, prá baixo do trapiche. O Jitão nunca fica bravo, ele só se levanta, roda o rabo que nem ventilador e vai encontrar os outros bois, como se o Miguelzinho fosse mesmo só uma mosquinha, um carapanã-zinho.
Embora lá, o senhor já viu as paiáças?! Que tão aqui na vila já faz uns dias?! Embora lá, que elas são muito engraçadas. Tem uma, a Bifi, que sobe nas árvores todas daí, parece macaca! E a outra, a tal de Quina, fica lá no pé mandando a Bifi descer. Muito engraçado, mesmo. Aí a Bifi sai correndo, esbarrando em tudo, quase caindo, e a Quina corre atrás, êta. Mas que dá é vontade de correr bem juntinho, que sempre sucede outra doidêra da Bifi.
Num é que as duas, a Bifi e a Quina, levaram as calças do tio Pedro e do papai, as calças de pescar e de caçar?! E vestiram, coube sei como, não! E as calças tinham um rasgo bem grande, bem aqui, na bunda. Muito engraçado! Parecia que as duas iam elas mesmas lá pro mato caçá. Aí, elas entraram na casa do tio Joca, que é meio bravo, sabe?, mas que num disse nada quando elas entraram. Elas então viram que a parede da casa do tio Joca é pintada, como é mesmo a mata e os rios. E aí a Bifi começou a nadar no rio da parede da casa do tio Joca, muito engraçado!, e aí a Bifi saiu da água e viu uma onça e se arrepiou todinha de medo. Muito engraçado! E a Quina achou que era era é nada e foi chamar a Bifi para ir embora e, quando a Quina viu a onça, ela pulou no colo da Bifi, muito engraçado! Aí as duas foram saindo bem de mansinho da casa do tio Joca e num 'e que assustaram com ele, cara de bravo. E o susto delas foi tanto, que até o tio Joca sorriu. Eu mesma nunca tinha visto os dentes dele, muito engraçado!
Aí, o senhor sabe?! Que tinha um ômi morando numa rede bem alta lá, bem lá, no canto das cabaceiras? E nunca ninguém viu o ômi. Mas lá tem tanta cabaça quebrada, que estão dizendo que o ômi come é as cuias todas. Eu que nem sabia, fiquei é só de espanto! Num é que a Bifi, sem medo nenhum, quando viu a rede fez só é achar que era para ela. Que a rede estava lá era para ela subir e descansar lá em cima?! Nem sei como ela conseguiu subir lá, tão rápido que foi. Sei que aí, muito engraçado, a Quina ficou é com inveja, pegou uma escada, porque mais sabida ela é, e pensa mais direito que a Bifi, encostou na rede e subiu ligeirinho, a Bifi nem entendendo nada. Aí só deu foram as duas balançando na rede.
Mas, como sempre elas brigam, num deu espaço prás duas e foi o que foi, o furdúncio. A gente, de baixo, só via que era o pé da Bifi, todo furado, aparecer prá fora da rede. Via, que era muito engraçado, a cara da Quina, com aquela boca enorme e cara de espanto, sair para fora da rede e entrar de novo. E era então a Bifi saindo da rede com várias caras, com bigode, com barba barbosa, de cabelo novo, que era muito engraçado. Muito engraçado! Aí que prá descer da rede a Quina foi ligeirinha, no ombro dum ômi graúdo que tava ali. E a Bifi, vendo a Quina indo embora, desceu da rede toda macaca, quase num pulo só, muito engraçado!
Agora, espia o senhor, num é que a Bifi se transformou numa árvore e começou a se esconder da Quina, que pareceu que tava é brava com ela?! Mas a Quina viu a árvore e ficou é encantada que bonita que era ela, cheia de galhos e folhas, ramagem que a Bifi pegou do chão. E num é que a árvore andava e seguia a Quina? E ainda lerdou prá Quina se perceber disto, muito engraçado!, e sempre a Quina virava prá trás e a árvore, a Bifi, estava mais perto. A Quina então fazia outro elogio prá árvore, mas começou a achar alguma coisa esquisita, modo de dizer, que a árvore tava era andando. A Quina fez aquela cara abobada dela, mas continuou indo mais adiante no trapiche. Aí, parece que, no nada, ela percebeu que a árvore era a Bifi! E aí, danada, esperteza só, pediu para a árvore ficar de costas. Dito e feito: pegou que a árvore era que era a Bifi. Muito engraçado! Dava vontade a gente mesma de dar uns tapas na Bifi e sair correndo atrás dela. As duas então saíram correndo e a Quina ralhando com a Bifi e nós tudo atrás, os miudinhos. Aí, elas sumiram, foram num sei prá onde lá dentro da casa da tia Neusa. E nós ficamos é só espiando a hora que as paiáças iam aparecer de novo.
Embora lá, vamos ver se as paiáças já apareceram. Eu nunca sei quando é a hora delas, que elas não tem hora de aparecer, pode ser de dia, de tarde ou de noite, a gente pode dar de cara com elas. Mas deve de ser agora não, que, espia, o sol está muito forte, o senhor nem queira sair de casa, que mãezinha diz que faz mal. Por isso os trapiches estão assim vazios, não tem ninguém andando. Mas vamos esperar, que logo elas vêm.
As crianças todas aqui do Arraiol fazem que só falam das paiáças estes dias. As brincadeiras lá da escola são é de imitar elas: tem a brincadeira da pulga que se equilibra no barbante, tem a pulga que pula, erra o alvo e cai na cabeça de alguém. E tem as mágicas da Quina, que tenta fazer sumir o papel, mas num consegue, e no final o papel se transforma num cordão todo colorido que sai da boca dela, sei não como ela faz isto! Isto não dá de imitar, não senhor! Aí tem tanta brincadeira, que não pára mais.
Mamãe diz que as paiácas são gente assim como nós, que usam pintura na cara e trocam de roupa. Eu acho que sei quem elas são, que dormem na casa da tia Neusa. E eu gosto é bastante delas, que ficando brincam com a gente. Tem um ômi que veio com elas, bem barboso, que é muito engraçado, ele estica a boca, um canto prá cima, outro prá baixo, que torce toda a boca. Parece que o ômi tem um fio na mão. Ele também tem uma máquina de tirar fotos que a gente aperta o botão e vê a foto num quadradinho atrás da máquina. Ele é bem legal e deixa a gente tirando tudo as fotos.
O senhor, mesmo, é que veio com elas, também, não é verdade?! O senhor também dorme lá na casa da tia Neusa! Embora lá, vamu brincar de pirueta, só uma, uminha, vai, vai!
Ufa! Eu não queria que vocês fossem embora, não! Vocês são tão legais! Embora, vem morar aqui com a gente, que o tio Jorge constrói uma casa rapidinho para vocês morarem. Vocês não podem?! Ah, que pena, dá um jeito, vai, que mamãe e o papai vão ficar felizes. Eles até pararam de pensar muito no Maninho estes dias. E papai gostou de vocês, de mostrar o mato e contar as histórias e a mamãe, bem faz para ela, gostou de passear com as paiáças e de mostrar o quarto do Maninho, que ela, a mamãe, vai até pintar as unhas, com desenho de florzinhas, da paiáça de cabelo curtinho.
Mas, se vocês não podem, faz bem, vale. Que foi tão bom! Mas vocês vêm de novo, não?! Para o ano, vai! Que eu, eu mesma, vou é fazer de esperar todos os dias as paiáças vindo chegando na beira da minha janela.
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domingo, 13 de setembro de 2009
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