terça-feira, 8 de setembro de 2009

MARCO ANTONIO QUINAN

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Goza

- Goza, pode gozar!

- Humpf...? Como assim? Arrghhh! – cabisbaixo na tentativa.

- Porque eu sei que você vai.

- O quê? – ainda tentando.

- Gozar, porra!

- Gozar quando? – cabeça baixa, no esforço.

- Agora mesmo. Não vai gozar?

- Ahhhhhh...Huuuummm...Gozar onde?

- Não é “onde”, nem “quando”, Inácio! É “do quê”!

- O que é que você quer, Maria Helena? Fala logo, fica cheia de entrelinhas, verbo intransitivo pra lá e pra cá, “do quê” o que?... Não vê que estou tentando abotoar a merda dessa calça que você me deu!

- Poxa, dei de presente e você ainda reclama?

- ...se eu conseguisse, humpf, pelo menos...essa merda de...

- Não fala palavrão, Inácio! Olha as crianças.

- Elas estão dormindo.

- Você deu...

- ...o remédio pro Lucas

- E a...

- ...Mariana dormiu sim.

- Mas você co...

- Coloquei a fralda dela com os esparadrapos paralelos como você sempre frisa categoricamente e veementemente!! Deixa eu tentar abotoar esta coisa, porque já estamos atrasados pro show!

- Porque você está atacado dessa maneira?

- Quem é que está atacado? Essa merda de botão...Tô a meia hora...Porque você comprou esse modelo, não tinha outro?

- É jeans, Inácio, você gosta, lembra? Ainda lembra que sou sua mulher?

- Tem coisa que é bom esquecer.

- O que?!?!

- To falando do Jeans, Maria Helena!! Que coisa!! É bom esquecer as vezes que prendi meu saco, inúmeras vezes, numa calça dessas. Dói, sabia? Não dava pra comprar sem botão onde deveria ter um zíper com aquela bainha protegendo o saco de dentadas extremamente dolorosas?!?

Um silêncio importante, porque ele finalmente levantara a cabeça e vira, com uma passada de olhar rápida, como ela estava vestida. Não disse nada.

- Você não é o mesmo, Inácio!

- Porque você está falando isso? – conseguindo finalmente colocar o botão na casa.

- Antes você era amável comigo, falava das minhas qualidades, elogiava gestos meus, acordava mais cedo pra fazer o café pra mim, chegava por trás de mim me abraçava e eu, lavando louça, sempre deixava cair a esponja pra você me encoxar. E, principalmente, quando eu colocava uma roupa como essa, você me gozaria fazendo uma metáfora, tirando um sarro!! Gozaria, tiraria barato!! Mas não, você não faz mais isso!! Será que nossa vida resumiu a isso, Inácio: a felicidade estava nas metáforas?!?

- Ahhhh, Maria Helena, puta que pariu, agora entendi. O “gozar” da roupa...Falar nisso, você está ótima! – amarrando o sapato.

- Ótima? Ótima? Ótima, Inácio?

- É. O que você não entendeu do elogio? - levantou-se e foi em direção a sala com a calça finalmente abotoada.

- E ótima é elogio quando? - seguindo-o.

- Eu quis dizer que você está linda. - pegando as chaves do carro.

- Não quis não. – colocando tudo na bolsa.

- Quis sim. – pegando o controle remoto da garagem.

- Se você quisesse dizer “linda”, você teria dito “linda”. – conferindo as luzes apagadas.

- Maria Helena, tem coisa que fica subentendida. – ignição.

- É disso que estou falando. Você está economizando metáforas, nem pros elogios, nem para as gozações. – batendo a porta do carro.

- Você está linda.

- Agooora? Não vem adular.

- Mas eu não estou adulando, só agora entendi o “gozar”. – ainda com riso no canto da boca.

- Não tente sair pela tangente não, Inácio. Nosso casamento não tem mais metáforas. Veja ao que ficamos fadados.

- Onde você aprendeu essa palavra, Maria Helena? Foi com a Zilda, não foi? Essas suas amigas socialites, como eu detesto esse vocabulariozinho.

- Ta vendo! Você poderia ter dito, quando eu disse “fadados” alguma coisa sobre varinha de condão, fadas, metáforas Inácio!! Aaaaaahhhhh...

- Maria Helena, não vai borrar essa maquiagem, senão você vai ficar mais quarenta minutos pra retocar. Nós estamos atrasados.
- Você não me ama mais...

- Claro que amo, cadê os ingressos?

Depois muitas onomatopéias de impaciência, chegaram. E na fila...

- Você viu a roupa daquela mulher, Inácio?

- Hum...sim..que tem?

- Vai ficar assim a noite inteira, monossilábico?

- Pára de encher, Maria Helena. Deixa a madame.

Era a gota d`água. Isto nunca acontecera: ausência de metáforas. Maria Helena passara a se preocupar. Sentaram, pediram bebidas, que Inácio obviamente reclamou do preço, e curtiram o show. Cada um a sua maneira, Inácio no gargalo e Maria Helena com sua paranóia legítima. Ao tocar a última música, Incompatibilidade de Gênios, João Bosco agradeceu, e Maria Helena pôde ver as lágrimas de cumplicidade nos olhos de Inácio.

Voltaram pra casa e no dia seguinte Maria Helena marcou consulta com um psicanalista.

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2 comentários:

  1. rsrsrsrs
    Muito provocativo...
    Mas, veja quem foi procurar o psicanalista...
    Cumplicidade tem, todos vimos. Mas metáforas não.
    Tomara que ela ache as metáforas com o psicanalista!

    Adorei

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  2. Rss...
    Que bom que gostou, também gosto muito do que ele escreve.
    Abraços.

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