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Poucas vezes consegui tirá-lo do casarão para um restaurante, um bar. Ficava desconfortável e arredio, mas tratava a todos muito bem e com carinho. Nunca à vontade, parecia não estar inteiro em lugar algum. Só uma vez fizemos um passeio no bosque; era um início de primavera e ele olhava o verde como se enxergasse cada musgo e o tom de cor que a tarde trocava. Eu invejava aquele olhar, queria ser olhada assim. Ali estava inteiro, parecia inventar espaços, perspectivas e cores.
Por ele mesmo nunca soube nada sobre sua vida, mas pesquisando e perguntando às pessoas mais velhas ligadas à arte, somado ao que sabia da faculdade, era como se o tivesse acompanhado de perto desde sempre, desde sua sobrevivência nas ruas, fazendo pequenos serviços; a adolescência como ajudante numa pequena tipografia de bairro, suas dificuldades no começo de carreira, a intensa boêmia, sua convivência com os artistas mais importantes do país, os prêmios, tragédias e amores. Sabia de todos eles e confesso que, de alguns, cheguei a ter ciúmes.
Uma vida intensa num homem diferente do tamanho de sua obra, era unanimidade. Somente não conseguia entender ele estar sozinho, não ter tido filhos; não responder a tantas cartas que chegavam todos os dias; pedia-me para deixar em cima da escrivaninha e depois colocava na gaveta da estante dizendo que depois iria ler e nunca lia. Cartas de amigos importantes, intelectuais de todos os lugares e de muitas entidades culturais. Imaginava, enquanto guardava, quanta importância tinha aquele homem simples, sem nenhuma vaidade ou extravagância.
Só uma vez o vi abrir uma carta que ele me leu. Era de Vinícius de Moraes contando de um novo amor e de um novo parceiro. Falava também de solidão... “ porque fazemos um – eu e a mulher – e não há dois arrependimentos... para um só corpo – nem duas salvações para um só sentimento...” nunca mais soube desse poema, mas o fragmento do verso e a entonação da voz gravei para sempre. Nesse dia me senti a mais privilegiada das mulheres. No final o poeta perguntava – “me conte em que imensidão andas morrendo, irmãozinho?”
Quando acabou de ler, senti que se arrependera de abrir o envelope; parecia que alguma ferida tinha sido aberta, e seus olhos apontavam algumas lágrimas. Discreta, me ausentei da sala percebendo o dilacerar do momento. Agora sei em que imensidão andava e que de fato morria nela.
Sentia desde as primeiras vezes que fui à sua casa o quanto era arredio na convivência com as pessoas. Tratava a todos muito bem, conversava sobre música como se fosse um especialista; sabia tudo da poesia brasileira, de qualquer das nossas artes, do nosso folclore, mas fugia do assunto quando alguém falava da ditadura ou de política. Não se aproximava das pessoas, de nenhum carinho físico ou coisas parecidas. Nunca sequer o abracei, mas não era formal e tinha sempre um olhar carinhoso, enxergava de verdade as pessoas.
Um dia, quando lhe servia a sopa, encostei sem querer o seio em seu ombro, e meu rosto aproximei, de propósito, até muito perto do seu. Senti que ele sentiu meu cheiro e se desconsertou. Pareceu ter uma dificuldade enorme em se arrumar nos movimentos de mexer a sopa, do corpo e de algum seu querer.
Dali, daquele momento, fiquei esperando o menor sinal que fosse para cair nos seus braços, amá-lo fisicamente também. Ter sua velhice de homem sem idade, tê-lo só meu.
Esperei todos os dias e em todos eles me senti olhada com amor, mas à distância. Às vezes com paixão, mas sempre à distância.
Toda vez que o vi triste tinha vontade de pegá-lo no colo, e uma melancolia grande me tomava nessas horas. Sabia um sofrimento intenso estar dentro dele, mas não conseguia imaginar sua criação nascer de tanta dor. Muitos dos seus quadros famosos que conheci na escola, nas revistas especializadas e nos museus, me diziam de um artista coerente e intenso desvendando a alma brasileira, densa, mas alegre e generosa. Nunca imaginei tanto tormento, não naquele artista. Pensei em alguma droga, prestei mais atenção sobre isso, não era! Bebida? Também não! Ele só bebia quando não estava pintando. Uma grande desilusão amorosa? Não fazia sentido! O isolamento, ele mesmo se impunha: só atendia à porta quando precisava de dinheiro; nem abria a correspondência, o telefone nem sempre atendia e talvez por isso quase nunca tocava mais.
Durante uma semana ele não trabalhou. Passamos dias lendo um ao lado do outro nas poltronas da sala; ouvimos dezenas de discos; nenhuma música de Villa Lobos, mas eu não tinha coragem de perguntar sobre muitas coisas, e essa era uma delas. Um dia pensei que iria me tocar, me tomar nos braços. Era um fim de tarde de domingo, ele lia Guimarães Rosa, e não me dei conta de que eu abandonara a leitura e o olhava de um jeito diferente, como se só existíssemos no mundo sem tempo. Misturados na minha emoção por inteiros, parecíamos formar um ser só. Senti um calor enorme no corpo, um desejo dele me pertencendo; senti meu corpo se molhar de desejo e percebi que ele também sentiu de alguma forma toda aquela atração. Ficou meio inquieto percebendo meu olhar e se retirou da sala.
Durante aqueles meses todos de nossa convivência, aprendi a amá-lo daquele jeito diferente: ele arredio a qualquer contato físico que aceitei sem nunca tocar no assunto. Aceitava pela intelectualidade que bebia na nossa convivência; aceitava quase viver um grande tempo da minha vida com o mais famoso pintor brasileiro vivo, sem entender direito muita coisa do que acontecia com ele e comigo. Mesmo recebendo muita crítica de meus amigos e familiares fui cada vez mais me envolvendo em sua vida.
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