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A frase era de indignação. “É tudo sem vergonha mesmo, tá morrendo e quer levar o resto junto!”, disse a mulher. “(...) E a essa hora da manhã”, emendou o senhor de gravata; “O que adianta tomar banho?”, quis saber a velhinha do crochê; “Tenho pena é dos filhos”, lamentou a garota da academia – e pronto, estava armado o zumzumzum.
Falavam da moça que aguardava, no terminal, o ônibus para a Lagoa. Certo que era jovem ainda – o suficiente para ignorar os desfechos trágicos –, mas se permanecia ali, em meio a toda àquela gente hostil, arrisco dizer que era por distração. “Esse já é o terceiro dela!”, informou a mulher ao meu lado, explicando depois: “Imagina que tô suportando isso desde a parada lá no bairro, quando ela se atracou com o primeiro. Depois, não satisfeita, pegou outro no cafezinho, tão logo chegou aqui, e agora taí com este!”.
Ah, a maldade humana! Quais monstros adormecidos carregam esses homens e mulheres? Que lembranças expurgam, sem saber, enquanto amaldiçoam a jovem na fila do ônibus para a Lagoa?
Sobre o monte, ao fundo, o sol ensaia uma manhã de verão. Estamos em abril e ainda assim, faz verão. Lembro que há um ano, por esta época, eu comemorava a chegada do outono. E falava sobre o cheiro do ar, das roupas de frio guardadas em malas, da casa e do espírito se preparando para o inverno.
Tudo, então, era ausência. Não somente a do companheiro que eu deixava para trás. Mas a ausência da rotina, dos pequenos hábitos que justificavam minha existência. Quantas angústias me assomaram nas noites e dias que seguiram à decisão? E o que dizer do medo, cada vez maior, que as palavras me abandonassem de vez?
Foram essas lembranças que me fizeram acompanhar as baforadas da moça que esperava o ônibus para a Lagoa. Porque eu me via nela. E sentia, com aquela crescente onda de intolerância, uma solidão antiga. A mesma que há um ano tomava conta de mim quando acendia um cigarro e percebia, pouco a pouco, as pessoas ao redor se afastando. As tosses forçadas, os olhares enviesados, um ou outro comentário desagradável.
E agora, vejam: cá estou eu sentada ao lado daqueles que antes me atiravam pedregulhos. Uma fileira extensa de homens e mulheres, num banco de cimento frio, retesando a face e soltando farpas à moça que aguardava o ônibus para a Lagoa.
Esse aparente pertencimento, no entanto, fere como feria antes a hostilidade. Porque não há como negar sua raiz fascista, não há como apagar o rastro de ignorância desta sociedade que ainda ontem associava o cigarro à idéia de inteligência, rebeldia ou charme. E que agora cobra aos fumantes, as contas públicas: “Abaixo o cigarro!”.Com tamanha perseguição, é forçoso reconhecer que a vida ficou mais fácil sem o cigarro.
Mas preciso dizer que não se toma impunemente uma decisão como esta, de abandonar companheiro tão fiel e ao mesmo tempo pernicioso. Prova disso são os quilos a mais na balança, as longas horas à procura desta ou daquela palavra, e essa solidão que entra sorrateira, em minhas madrugadas.
A voz rouquenha da mulher sentada ao lado não me desperta de todo – há uma névoa sobre mim. Então ouço longe, muito longe, um ou outro comentário a respeito da moça; do cigarro; da fumaça. Dessa fumaça que se mistura ao ar quente de verão e que absorvo, em silêncio, como se nela repousassem minhas mais antigas e caras lembranças.
É abril. E o outono segue apenas como uma idéia, um novelo de lã ocre que repousa em alguma esquecida sacola do universo.
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Vássia Silveira - http://todaquinta.blogspot.com/
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quinta-feira, 21 de maio de 2009
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