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A tarde abafada e densa anunciava, sob a pressão dos carros, uma chuva ansiosa por desabar. Havia tensão coletiva no ar. O murmúrio inquieto das pessoas tornava indefiníveis os pensamentos, atordoados pela pressa de libertar o corpo daquele calor letárgico. Cortando a tarde como quem atravessa um campo de nuvens, ela nem percebia o cenário cáustico que desenhava enfados à sua volta.
Era noite em seu pensamento, bem próximo da meia-noite, e ela bordava cores brandas no tecido de tramas, sentada na direção da brisa que invadia o quarto de costura pela janela semi-aberta. O coração mergulhava na emoção da seqüência de fados delicadamente escolhidos por sua tia de alma portuguesa, que costurava lenços de saudades em silêncio.
Um grito na esquina da tarde quase carbonizada atraiu-a de volta ao volante. Num reflexo pisou no freio e, calmamente, desviou o carro de dois homens que agitavam os braços numa aparente discussão. Raramente se irritava com o trânsito. Naquele dia então, as marcas invisíveis deixadas em sua pele e as vestes de ternura que vestiam seu espírito a mantinham em estado de elevação.
Voltou ao quarto de costura para recompor sua perdoável aflição. Enquanto bordava, sem dar muita atenção aos fios, pensava com o coração acelerado no dia que amanheceria inebriado pela espera, que se derramaria lenta feito areia clara numa ampulheta dourada. Espera por alguém que sabia que ela sabia, mas sequer a conhecia. Alguém que a percebia nas marcas encontradas em antigas fotografias.
Nesse exato momento o semáforo de três tempos apagou a lâmpada amarela de alerta e fez com que a fila de carros parasse diante do proibitivo vermelho. A mudança de cores luminosas lá no alto trouxe de volta aos olhos dela, os olhos fugidios dele. Eram os mesmos olhos que a haviam fitado num sonho quase real sonhado anos antes. Eram eles que falavam com ela enternecidos com sua dor.
No sonho, os olhos que pareciam transcendentes, de uma indescritível cor de reflexo solar na superfície de um rio musgoso e profundo, pediam impacientes que ela vivesse. Que vencesse aquele espaço sem tempo de lágrimas e se permitisse beber a vida com a sede dos imortais. E ela chorava compulsivamente. Não sabia como fazê-lo, apenas sentia a tristeza permear sua alma vestida de trapos.
A lâmpada verde do semáforo a fez seguir. Estava aberto o caminho e ela o queria por inteiro. Dali em diante não importaria a distância, e o impossível lhe parecia tênue ilusão dos sentidos. Ela queria mais... Queria saciar sua fome de menina com o que ele sabia que ela sabia. E ela agora sentia que ele também sabia. Eram sábios de si enquanto carne e espírito que se espreitam por entre a luz das estrelas.
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domingo, 24 de maio de 2009
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