quinta-feira, 30 de abril de 2009

O POVO DO BELO MONTE XV - Anabel – Relato de sua convivência com Brás Teodoro.

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Desde que o vi pela primeira vez com fisionomia cansada, mas aparentando muito menos idade do que tinha, apaixonei-me e tentei chegar dele o mais próximo que pude. Talvez o tenha amado como a ninguém. Às vezes me perco em pensamentos e nem sei se ele existiu de verdade ou se estou existindo de verdade sem ele.


Quando comecei a visitá-lo mais de uma vez toda semana, sem telefonar para marcar, me acostumei a saber quando ele queria que eu entrasse. Foi pela música. Se estivesse tocando Villa Lobos não me receberia. Quando me deu a chave da casa, nem precisou me falar desse sinal. Outras coisas aprendi naturalmente: não mexer no seu material de trabalho, em sua estante de livros, nos discos e na sua vitrola nova com uma caixa enorme de agulhas; nem na gaveta onde jogava a correspondência que recebia e nunca lia.

Nunca havia conhecido alguém assim, que ouvisse minhas confidências com atenção e interesse sem se intrometer. Ouvia dos meus amores, enganos e pequenos acertos, calado. Era como se pertencesse a minha história. Eu me desnudava inteira como nunca fizera antes nem com minha melhor amiga. Dessa forma me entregava a ele que nunca falava de suas coisas pessoais. Nossa comunicação tinha um formato diferente, uma espécie de amor e cumplicidade e a dose grande de loucura dos seus últimos meses que eu compreendia sem entender. Uma primavera inteira na intensidade de quase um século, foi o tempo de nossa convivência.

Entreguei-me totalmente às tarefas que me impus: coisas práticas do dia-a-dia e aos seus olhares que me falavam de lonjuras e plenitudes, sem conseguir esconder a angústia e a solidão. Em diversas ocasiões o desejei, quis seu corpo e quis lhe dar o meu. Uma vez ele me disse que meu olhar era muito generoso, e que via a vida no seu trabalho, e que ele via meu olhar ver a vida dele. Pensei beijá-lo naquela hora, mas não tive coragem. Seria como arrancá-lo de alguma intensidade; acabara de pintar sua mais bela obra e chorava por muitas horas quase todos os dias. Eu ficava sentada do lado de fora da porta ouvindo repetidamente as Bachianas e seus soluços.

Naquele dia, quando a música parou e entrei, vi o quadro Caminho de Uauá pronto. Admirei com os olhos lacrimejando na emoção da beleza de obra e autor se confundindo nos meus sentimentos; do artista e do homem vivendo em meu coração intensamente.

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