sexta-feira, 3 de abril de 2009

O POVO DO BELO MONTE XI - Brás Teodoro

.



***

Lá fora, já boca da noite, começava o terço na latada; as ladainhas, os cantos benditos. O povo e seus santos, uma harmonia conjugada com a dignidade nascida entre famintos e andrajosos, sandálias de couro cru e a Bandeira do Benvirá.



O ar cansado punha a dor nos meus braços, e cada um que passava no caminho me tocava; o bócio subjugava os rostos magros secando aos poucos. Eram mais de vinte esmolambados e famintos gemendo seca e descaso. Seus bornais desprovidos, colados nos corpos vazios, presos no esturricado da caatinga onde só restava o pó, finando o horizonte vermelho-cinza. Iam os mal- aventurados da secura de Masseté procurar o Belo Monte. E tinham fé, sendo a própria fé sem servidão.


Em meu corpo, cada um que passava punha um pedaço de sua solidão, deixando junto um resto da perseverança. Acompanhei cada passo até o Barracão de Distribuição de Alimentos e chorei com eles aquela tênue esperança derramando alegria.


***

No meio do esturricado me vi, caatinga renegando vida em volta da minha solidão; um silêncio resmungado; o barulho de meus pés no pó e a cantiga do cego correndo dentro dos meus ouvidos parecendo um sussurro, como se ele cantasse somente as consoantes das palavras. Astuciava espertezas, aparecendo ora na minha frente, ora pelos lados. Punha um ronco, antecipando cada movimento como fosse bananeira gemendo cachos; ora aproximava, ora pulava pra trás.



O fobento me apontava o dedo e desapontava rindo, esquivançando. Seus olhos - um já totalmente branco da doença e o outro vazado e murcho dentro da órbita - enxergavam minha pessoa e meus pensamentos. Ria, ria muito. Num momento retirou a viola do saco e pôs-se a cantar sua latomia. Seu olho inteiro mudava e desmudava de cor o tempo todo, fazendo os galhos secos das árvores mortas do caminho estalarem como se fossem fogos e saudassem o próprio medonho.


O meu pensamento queria ter Anabel dentro e ela não ficava. Sentia apenas a assuada do cego em volta e a quentura do ar abafando minha vontade. Numa pequena distância, ele feria as cordas, tirando só estridências e doidejos, fazendo um movimento para frente, quase encostando seu rosto no meu e, para trás, se colocava aprumado no mesmo lugar. Sua voz se despedaçava e se juntava de novo na melodia a minha volta. O canto que ele cuspia no meu rosto era confuso e incompreensível, mas grudava na minha pele como uma gosma. Como saí deste torpor não sei, mas dele ficou um cheiro forte e nenhum entendimento.

***

Sentado na única sombra da paisagem ouvia Sosó contar.



- No decurso da vida só lidei com desafios. Vivi destemido em meio às emboanças e à violência da profissão, indo de um lugar a outro, como cigano sem estada. Os muitos que matei me puseram raiva e ojeriza pra gastar com as menores coisas; um bicho do mato o que eu era. Matando gente no mando dos outros, andei pelo Cariri, por dentro da Paraíba e no entorno do Juazeiro. Estraguei muita moça nova e nunca andei enxameado, meu trato era só. Eu e o diabo correndo dentro das brigas do mundo, coisando o que a covardia punha nas nossas mãos. E era um tanto de homens poderosos me pondo em vingança, acuando a vida dos outros por via da minha valentia. Eu era as balas e o corte das facas que sagravam o mais forte.



Nunca plantei fava nos orifícios de nenhum animal. Só fiz isso com o primeiro que matei no Mamuquém - um tal de Ariosto - por via de ouvir dizer da simpatia, sangrei ele a mando duma desonra de família; foi rente a um barranco... enfiei as sementes nele todo e enterrei ali mesmo e de lá não saí; fiquei tocando pife, caçando punarés enquanto esse um servia a terra. Quando desenterrei e comi as favas catingando o podre do morto, senti o diabo fechando os mistérios e me pondo encruzilhadas.


No segundo que despachei ficou feita minha fama; virei João Sosó e o mundo virou atrás de mim. Matei de tudo que é jeito e por todo tipo de paga, até o dia em que risquei o caminho dum tal de Quinzim do Mota. O balaço deu no meio dos peitos; quando me aproximei, conferindo a pontaria, senti a perfumação do ar em volta e ouvi suas últimas palavras. Falava do Belo Monte num brilho de olho diferente sem o embaçado da morte. Fiquei com o cheiro dele passando rente, me empurrando um rumo.


A mulher e os filhos encontrei cortando palma... gastei todos os cartuchos que tinha. Pela primeira vez pensei na vida e apertei o encourado contra o peito lembrando a mãe. Desse dia, tudo que fiz foi andar o caminho até o Belo Monte.


Enquanto me contava sua história acompanhava a abertura das trincheiras. Foi por causa delas que ficou conhecido no Belo Monte como Sosó da Trincheira e era ali, no ofício de ensinar a lida com a surpresa e as armas, que purgava seu passado.

***

O susto quase me derrubou do animal. Zé Sereno passou como um risco acamando cipó atrás da rês desgarrada; os ramos abriram no momento de ele cabear o animal, e o barulho do farfalho de mato e das pisaduras na terra deram o susto. Com o horizonte nos olhos me refiz; era o tabuleiro, última etapa.



Manoel Redondo apeirava a canga, regulando o cambão. Divino cuidava a arriação, ajeitando o caçuá com o bocado na mão bilando a arma da cinta do cozinheiro, quantas vezes cobiçada.


Entre eles, eu estava num cavalo cansado de légua, pronto pra cair de borco, com a cincha frouxa; devinha como os vaqueiros, andando cansaço, atrelado ao destino deles. Não sei como desmontei e arrumei o prumo, o arreaz e o peitoral, escanchei e segui aboiando igual, como se nunca tivesse feito outra coisa na vida.



Na tremura do chão vindas no olhar que o sol inclemente punha à nossa frente, as figuras foram se formando: era gente de todo lugar do sertão, com jeito de lonjura e precisão. Traziam tudo que conseguiam carregar. Muitos venderam tudo que tinham para se juntar ao povo do Belo Monte e defender o Conselheiro.



Sacas de carimã, feijão e garajaus em lombo de jegues, carros riscando o chão com o peso da madeira que carregavam; potes com mel de jati e manteiga do sertão, pareciam camboeiros. Foram se juntando pelo caminho, vendendo tudo o que tinham e se destituindo de qualquer outro apego que não fosse o da luta pra tirar dos poderosos o bordão da injustiça.


Nesse dia, chegaram ao Belo Monte mais de duzentas cabeças de gado e - cantando hinos - igual tanto de cristãos. No meio deles, vi o cego incriado, me acenando como se me pusesse rezado-de-cobra ressumando ardis e me mandando dar queixa ao sem jeito.


MQ
.

Nenhum comentário:

Postar um comentário