quarta-feira, 1 de abril de 2009

O POVO DO BELO MONTE X - Brás Teodoro

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Quando comecei a escrever os versos?... Não saberia precisar isso e nenhuma importância teria lembrar. Mas, me consumia sonhar o vigor calado de meu corpo; amá-la quase silenciosamente no dia-a-dia da nossa intelectualidade e ternura. Ia me enlouquecendo, como se estivesse preso num emaranhado de tempo, voltando a ser o que já fui para amar uma mulher que não amei plenamente como amava... era como se fosse eu mesmo quem tecesse as malhas do presente, usando os fios do passado, meu e dela, desmanchando lembranças para minha teia imaginária.

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A vereda íngreme serpenteava paralelamente à estrada e fazia uma aberta antes de dar no batedor. O lugar agüentava a seca; acende-candeia, imburana, jatobazeiro, pau-branco, cabaceiro, jurema e catingueira; dum lado o alúvio, secado de resto; do outro a tiririca e a babugem tomavam conta, fartando em qualquer brando de chuva, reverdecendo; na declividade vicejavam: capeba, mastruço, caroá, muçambé, mandacaru, janaguba, macambira e japana, os remédios da terra.


Lugar em que até o barbatão chegava atrás das pasteiras, dando barroada no mourão e esteios, assustando os meninos botadores de bezerro. Breado, o burrego gemia; as mulheres faziam a purga de sementes; juruti e até corrupião batia canto. Cercando todos os lados, a cansanção escorava.


Próximo ao lugar de abate, era comum ouvir choro de gado e desde longe o grito dos vaqueiros: - ... ecô... ecô...! - vindo pela costaneira com a cruviana, batendo dos lados, dando cabimento ao embretar. O lugar, entrada de fosso feito na esperteza de Macambira, era também a trincheira dos quantos criando gados e miúças, tirando fartura do leite no puxo de toda manhã. Foi a derruba dos primeiros que chegaram, sido roçado, agora era o curral.


Meu corpo lacerado por tantos suplícios parecia estar se flagelando com o que imaginava ver ou que via, sofrimento e sujeição. Um Deus acreditado que me parecia amargo com seu livre arbítrio, semeando um sem jeito, com a seca, com a sina de agredidos e agressores; incompreensão, vaidade, o bruto assim tornado pela ausência ou ambição. Todos irmãos e andando suas verdades, algumas em seus deuses, algumas em seus demônios, que decerto semelhavam e tinham contido outros deuses e demônios em si mesmos.


Estava sentado no meio das cabras, vendo o trabalho render; uma rês enrelhada no mourão tentava se soltar; um menino empachado fazia o fojo esperando a caça. Pensava dentro da loucura - o pensamento dentro do pensamento - quando ouvi o primeiro som do sinete e o grito, era o ponta chegando ofegante contando:
- Desde que a mãe-da-lua cantou seu agouro depois da noite velha, cheirei o ar e o instinto me pôs nas brenhas e vi... vi amanhecendo eles pelo Cambaio, arenguei uns tiros, botei catinga e aviei avisar.


Ali esperei todas as mortes com um cão ferido nos braços e senti frio, sede, me senti nenhum, ninguém, dentro duma fornalha e meus deuses e demônios rilhando os dentes uns para os outros, fazendo escaldo com meu sangue... era a guerra me possuindo.

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Vinha pela grota tateando com a vara as paredes de pedra. Seus olhos cegos enxergavam um brado de concórdia que punha no canto, estalando solidão, e a voz firme alastrava inteiriçada de perdão:

Recolham as armas
E salguem os punhais
Que a aurora seja perfumada
E a lua nasça nos quintais
E nas ruas corram proclamas
Desobrigando os leais
É chegada a hora
Da confiança nos beirais
Uma nova lei escrita
Nas canções dos desiguais
Deixando o amor nascer
Na verdade dos mortais
Recolham as armas
Selem os sinais

Não sei como o segui por entre as tropas e em meio aos casebres do Belo Monte, tampouco quantas vezes ele, com sua cegueira, subiu na Igreja Velha e tomou o sino, gritando a estridência do seu verso. Seus movimentos cegos punham a palavra do seu canto nos ouvidos da caatinga surda regurgitando morte. Andei junto às horas todas da madrugada; ele ia ora sussurrando, ora gritando o penetrante da sua visão nos ouvidos dos homens e da guerra. Sua demência ninguém ouvia. Tremente, gritava nos ouvidos dos soldados, dos homens da Guarda Católica e somente eu ouvia seus versos.


Acompanhava o cego e ele não me via. Ele acompanhava o movimento da guerra e a guerra não o via. Só estralejava entre nós, marcando a loucura do momento, esvaziando seus rituais.


Aquele canto de concórdia gesticulava dentro da minha cabeça e o ar me faltava nos pulmões; precisava me sentar. De repente, a calma veio daquele canto sumindo no ar.


Estava ao lado, assistindo Mestre Faustino - mestre-de-obras e talhador de altares - cumprindo sua arte com o formão preso ao pulso por uma tira de couro; parecia usá-lo como se ensinasse entalhes. Também me punha moldando o papel-barro, garantindo nos movimentos sua atenção. Nossos olhares sorriam cúmplices, descobrindo as garrafas vazias no meu tempo e no dele, parecia que descumpríamos uma lei e cumpríamos apenas nossa sina, embriagando-nos para a beleza.

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MQ

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