sábado, 11 de abril de 2009

O POVO DO BELO MONTE XII - Brás Teodoro

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Porvindouro sege, só tenência serviente basta aos tempos do Cariri empistolando bando, desvivendo no espinhento chão cedido pelo ladravaz impondo couto. Agora, o danisco vem montado em tropa, e o Belo Monte vira a batalha.

Assim, dizia aos demais sentados a sua volta, na margem que as lavadeiras usavam como coradouro, Manoel Quixadá aludia aos donos das terras de onde os parentes, maioria naquele ajuntado, vieram. Homens acostumados a lidar com o gado na caatinga seca, vivendo o rústico espantoso da submissão e, agora construindo o lugar onde todos eram por todos, armando-se de parcas armas e coragem para sair plantando nos caminhos a ferocidade solitária de suas verdades.

A arma na minha mão queimava os dedos; os cartuchos que as mulheres me deram pesavam parecendo chumbo no embornal; as flores dos faveleiros derreavam pelo caminho do piquete. Ao longe, em formação, o comboio de mantimentos pedindo ser atacado. Tiros desgarrados soavam esparsos ecoando por entre homens e animais. Manoel Quixadá pôs as ordens e atacamos o flanco contrário, esparramados em leque. Os companheiros atiravam compassados, em boa mira, na economia de cartuchos. O cerco durou menos de uma hora... a debandada dos soldados deixou os animais em alvoroço.

No longe, um soldado atingido na perna gastou toda a munição da bruaca da mula morta ao seu lado. Atirava a esmo como se estivesse enxergando o alvo. Meu corpo suava frio e o gatilho pedia a pressão do disparar. No campo da mira, o ferido tentava levantar para fugir. Senti meu corpo se esvaindo numa sensação de desfalecimento: primeiro as pernas, depois o tronco, a cabeça e por fim os braços, e, nesse instante, ouvi o tiro e me senti caído na sala empapado de suor e culpa.

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No que havia de ir contando, falava das perseguições, fosse louco, fosse o assassino da mãe e da esposa preso sem contestar valor e outros crimes que nos volantes corriam o sertão; falava do bispo proibindo pregações pelas paróquias. De certo, quem mais sabia da vida do Beato Penitente andejando os ermos era Anunciada, lembrando no jeito de encher os cartuchos o merecer dos passos do beato:

- Os pobres andavam junto com ele; muitos, os mesmos que estão aqui na igreja resistindo, garrados nos alicerces dessas paredes e nessa fé que nunca há de ruir.

Agora ele nem sai mais do Santuário. Fica nas rezas e nas penitências, e vai fraco sonhando a igreja do Bom Jesus e escorraçar os agressores.

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Da linha que via a boca do canhão sobressaíam alheados os soldados que manuseavam a máquina plantando morte e destruição. O graduado a cavalo igualmente desatento, nem via os companheiros tirando a farda e se embrenhando no transpasso da linha de fogo, mesmo à luz do dia.

Eram os chamados depois dos benditos e ladainhas a que assisti naquelas noites. Depois das rezas e das prédicas, juntavam-se todos na praça da Igreja Velha e punham-se a entrecortar os cantos com o nome dos parentes que julgavam estar na tropa sitiando o Belo Monte. Cantavam o nome do parente, do pai, da mãe e do lugar onde nasceram. A noite engolia o chamamento e desengolia as vozes na amplidão e nos ouvidos dos agressores. Parecia um sobrenatural gemendo nomes.

Muitos se juntaram às suas famílias e parentes, e muitos desertaram, imaginando lutar contra bruxedo de almas do outro mundo. Arribavam em pequenos grupos, largando armas e pertences pelas beradeiras do acampamento, parecendo bichos que andam na noite. O calundu não deixava a tropa dormir. Pareciam, aquelas vozes, colocar caninga no ar, chafurdando o íntimo de cada um.

As ladainhas eram cantadas por todos, a maioria mulheres e crianças. Os nomes por Altina e Rita das Dores. Era a fé em armas estendendo o braço da fraternidade pra lutar nas batalhas.

De brusco, me senti puxado pela mão. O cego me chamava para fazer coro e gritava sua ladainha numa voz gasguita e irritante chamando o nome dos graduados de ambos os lados, soltando junto com as palavras um labareda de fogo como se estivesse sendo ouvido e esse fosse o jeito de desvelar o mundo.

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De onde estava, misturada, ouvia, intercalada aos tiros, a voz de Anunciada contando os anos passados, a construção da Igreja Velha, as pessoas chegando de todos os cantos; das securas pro lugar santo sagrado, que o frade nem quis entender, por ser lá o Deus dele, o dos ricos.

- Primeiro as gentes de Jeremoabo, Uauá, Cambaio, Rosário, Chorrochó e Curral dos Bois... os camboieiros também levavam a notícia do Belo Monte nascendo.

Achamo a fartura - dizia ela - no meio do seco, das pedras, dos espinhos, das ipueiras e veredas. Cada um sabia de um tanto; um tanto que era de todos; muita farinha e legume de caroço, criação de chiqueiro; no rio corria água; cada tapagem era uma festa, fartura que ninguém maginou conhecer; fome cabadinha num canto e nóis na fartura simples da vida; era sortido de boi e de bode e irmão ajudano irmão.

No dia de feira, vinha gente de todo lugar negociar e ver a igreja construída de pedra, cal e muita fé. Ninguém punha preço de cobiça em nada; o justo era nossa semente.

Parecia rezar uma ladainha, falando o nome de quem o combate já tinha engolido e a rua onde viveu cada família

- Beleléu da Rua dos Caboclos, Zé Sereno do Campo Alegre, Alcibíades da Rua da Caridade, Pedro Cacho do Cemitério, Anacleto da Professora...

Nem a dinamite estrugindo o ar calava Anunciada. As pausas que fazia era quando a tosse, vinda do Santuário, enchia a igreja quase em ruínas.

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Macuco era vida miúda; pensava ser passarinho, voando raso perto do tabocal; nem sentiu o estalo da socadeira. Bendegó parou, ajeitou as azelhas no lombo do animal, coçou o mucuim e foi apanhar a caça. Mal abaixou sentiu o cheiro, o ar quente deslocar a poeira da caatinga e o barulho da tropa vindo com seus paramentos e toques de caixa. Seu tempo foi só de tocar o jumento acostumado ao caminho de volta, baixar a munição no primeiro ondulado e se pôr em pontaria. O primeiro tiro que deu espalhou feridas e tumulto no grosso da tropa.

A fuzilaria começou em muitas direções; o chocalho badalando longe confundiu a maioria das balas; as catingueiras gemeram os tiros. Do oculto, Bendegó conferiu o chumbeiro: tinha mais doze carregos. Esperou a marcha andar. Mudava lesto de posição e conferia os outros disparos.

De onde via a cena, sentia o medo correr pela tropa e a ferocidade salgar a boca dos graduados. Assuadas desorganizando os animais de tração e boca. As cornetas bradando ordens não obedecidas; soldados abandonando o armamento e se metendo por entre os imbuzeiros. Dali segui Bendegó assobiando sua valentia. Na volta ouvi seu relato a Pajeú, que escolhia homens para, no quebrar da barra, assombrar a marcha.


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