segunda-feira, 13 de abril de 2009

MACHADO DE ASSIS

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Publicado em A Semana - Gazeta de Notícias em 22/07/1894


Conheci ontem o que é celebridade. Estava comprando gazetas a um homem que as vende na calçada da Rua de S. José, esquina do Largo da Carioca, quando vi chegar uma mulher simples e dizer ao vendedor com voz descansada :


– Me dá uma folha que traz o retrato desse homem que briga lá fora.

– Quem?

– Me esqueci o nome dele.

Leitor obtuso, se não percebeste que "esse homem que briga lá fora" é nada menos que o nosso Antônio Conselheiro, crê-me que és ainda mais obtuso do que pareces. A mulher provavelmente não sabe ler, ouviu falar da seita dos Canudos, com muito pormenor misterioso, muita auréola, muita lenda, disseram- lhe que algum jornal dera o retrato do Messias do sertão, e foi comprá-lo, ignorando que nas ruas só se vendem as folhas do dia. Não sabe o nome do Messias; é "esse homem que briga lá fora". A celebridade, caro e tapado leitor, é isto mesmo. O nome de Antônio Conselheiro acabará por entrar na memória desta mulher anônima, e não sairá mais. Ela levava uma pequena, naturalmente filha; um dia contará a história à filha, depois à neta, à porta da estalagem, ou no quarto em que residirem.

Esta é a celebridade. Outra prova é o eco de Nova Iorque e de Londres onde o nome de Antônio Conselheiro fez baixar os nossos fundos. O efeito é triste. mas vê se tu. leitor sem fanatismo, vê se és capaz de fazer baixar o menor dos nossos títulos. Habitante da cidade, podes ser conhecido de toda a Rua do Ouvidor e seus arrabaldes, cansar os chapéus, as mãos, as bocas dos outros em saudações e elogios; com tudo isso, com o teu nome nas folhas ou nas esquinas de uma rua, não chegarás ao poder daquele homenzinho, que passeia pelo sertão uma vila, uma pequena cidade. a que só falta uma folha. um teatro, um clube, uma polícia e sete ou oito roletas, para entrar nos almanaques.

Um dia, anos depois de extinta a seita e a gente dos Canudos, Coelho Neto, contador de cousas do sertão, talvez nos dê algum quadro daquela vida, fazendo-se cronista imaginoso e magnífico deste episódio que não tem nada fim-de-século. Se leste o Sertão, primeiro livro da "Coleção Alva", que ele nos deu agora, concordarás comigo. Coelho Neto ama o sertão, como já amou o Oriente, e tem na palheta as cores próprias – de cada paisagem. Possui o senso da vida exterior. Dá-nos a floresta, com os seus rumores silêncios, com os seus bichos e rios, e pinta-nos um caboclo que, por menos que os olhos estejam acostumados a ele, reconhecerão que é um caboclo.

Este livro do Sertão tem as exuberâncias do estilo do autor, a minuciosidade das formas, das cousas e dos momentos, o numeroso rol das características de uma cena ou de um quadro. Não se contenta com duas pinceladas breves e fortes; o colorido é longo, vigoroso e paciente, recamado de frases como aquela do céu quente “donde caía uma paz cansada", e de imagens como esta: "A vida banzeira, apenas alegrada pelo som da voz de Felicinha, de um timbre fresco e sonoro de mocidade, derivava como um rio lodoso e pesado de águas grossas, a beira do qual cantava uma ave jucunda." A natureza está presente a tudo nestas páginas. Quando Cabiúna morre ("Cega", 280) e estão a fazer-lhe o caixão, a noite, são as águas, é o farfalhar das ramas fora que vem consolar os tristes de casa pela perda daquele "esposo fecundante das meigas virgens, patrono humano da floragáo dos campos, reparador dos flagelos do sol e das borrascas". "Cega" é uma das mais aprimoradas novelas do livro. "Praga" terá algures demasiado arrojo, mas compensa o que houver nela excessivo pela vibração extraordinária dos quadros.

Estes não são alegres nem graciosos, mas a gente orça ali pela natureza da praga, que é o cólera. Agora, se quereis a morte jovial, tendes Firmo, o vaqueiro, um octogenário que "não deixa cair um verso no chão", e morre cantando e ouvindo cantar ao som da viola. "Os Velhos" foram dados aqui. "Tapera" saiu na Revista Brasileira.

Os costumes são rudes e simples, agora amorosos, agora trágicos, as falas adequadas as pessoas, e as idéias não sobem da cerebração natural do matuto. Histórias sertanejas dão acaso não sei que gosto de ir descansar, alguns dias, da polidez encantadora e alguma vez enganadora das cidades. Varela sabia o ritmo particular desse sentimento; Gonçalves Dias, com andar por essas Europas fora, também o conhecia; e, para só falar de um prosador e de um vivo, Taunay dá vontade de acompanhar o Dr. Cirino e Pereira por aquela longa estrada que vai de Sant’Ana de Paranaíba a Camapuama, até o leito da graciosa Nocência. Se achardes no Sertão muito sertão, lembrai-vos que ele é infinito, e a vida ali não tem esta variedade que não nos faz ver que as casas são as mesmas, e os homens não são outros. Os que parecem outros um dia é que estavam escondidos em si mesmos.

Ora bem, quando acabar esta seita dos Canudos, talvez haja nela um livro sobre o fanatismo sertanejo e a figura do Messias. Outro Coelho Neto, se tiver igual talento, pode dar-nos daqui a um século um capítulo interessante, estudando o fervor dos bárbaros e a preguiça dos civilizados, que os deixaram crescer tanto, quando era mais fácil tê-los dissolvido com uma patrulha, desde que o simples frade não fez nada. Quem sabe? Talvez então algum devoto, relíquia dos Canudos, celebre o centenário desta finada seita.

Para isso, basta celebrar o centenário da cabeleira do apóstolo, como agora, pelo que diz o Jornal do Comércio, comemoraram em Londres o centenário da invenção do chapéu alto. Chapéus e cabelos são amigos velhos. Foi a 15 de janeiro último. Não conhecendo a história deste complemento masculino, nada posso dizer das circunstancias em que ele apareceu no dia 15 de janeiro de 1797. Ou foi exposto a venda naquela data, ou apontou na rua, ou algum membro do parlamento entrou com ele no recinto dos debates, a maneira britânica. Fosse como fosse, os ingleses celebraram esse dia histórico da chapelaria humana. Sabeis o que Macaulay disse da morte de um rei e da morte de um rato. Aplicando o conceito ao presente caso, direi que a concepção de um chapeleiro no ventre de sua mãe é, em absoluto, mais interessante que a fabricação de um chapéu; mas, hipótese haverá em que a fabricação de um chapéu seja mais interessante que a concepção do chapeleiro. Este não passará do chapéu comum e trabalhará para uma geração apenas; aquele será novo e ficará para muitas gerações.

Com efeito, lá vai um século, e ainda não acabou o chapéu alto. O chapéu baixo e o chapéu mole fazem-lhe concorrência por todos os feitios, e, as vezes parecem vence-lo. Um fazendeiro, vindo há muitos anos a esta capital, na semana em que certa chapelaria da Rua de S. José abriu ao público as suas seis ou sete portas, ficou pasmado de vê-las todas, de alto a baixo, cobertas de chapéus compridos. Tempo depois, voltando e indo ver a casa, achou-1he as mesmas seis ou sete portas cobertas de chapéus curtos. Cuidou que a vitória destes era decidida, mas sabeis que se enganou. O chapéu alto durará ainda e durará por muitas dúzias de anos. Quando ninguém já o trouxer de passeio ou de visita, servirá nas cerimônias públicas. Eu ainda alcancei o porteiro do Senado, nos dias de abertura e de encerramento da assembléia geral, vestindo calção, meia e capa de seda preta, sapato raso com fivela, e espadim a cinta. Por fim acabou o vestuário do porteiro. O mesmo sucederá ao chapéu alto; mas por enquanto há quem celebre o seu primeiro século de existência. Tem-se dito muito mal deste chapéu. Chamam-lhe cartola, chaminé, e não tarda canudo, para rebaixá-lo até a cabeleira hirsuta de Antônio Conselheiro. No Carnaval, muita gente o não tolera, e os mais audazes saem a rua de chapéu baixo, não tanto para poupar o alto, como para resguardar a cabeça, sem a qual não há chapéu alto nem baixo.

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2 comentários:

  1. Marcos, postando Machado de Assis, você dá uma enorme contribuição às letras de nosso país!

    É mais uma oportunidade para lê-lo!
    De um português impecável sempre e
    dominando a arte de escrever, ele foi
    o nosso primeiro e grande inspirador!

    Um abraço nessa manhã de ressaca
    no Rio de Janeiro!

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  2. Jac.

    Foi o único intelectual brasileiro, na época, que criticou a imprensa e a república por não entenderem o que era o Belo Monte de Antônio Conselheiro.

    Te abraço.

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