terça-feira, 7 de abril de 2009

JOÃOZINHO GOMES

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A Flecha Passa


E Soronopolos apóstolo em seu túmulo nulo.
Nenhum homem decifrará a cifra da escritura atéia
–Yscaulom Locutópilum Polipilitápelo –
lavrada em mármore egípcio, a ipsilon aspado.
Prenúncio de manadas taurinas estourando
sobre nós, esmagando as harpas instauradas
ao tórax disto – que ao sol – se chama corpo,
deixando em pó, algo que já foi ímpar, em par,
algo que já foi só, em paz, algo que já foi pós, em pus,
algo que decompôs. E póstumos, a postos
esperamos pela fênix que se fará de nós, e pelos
faróis que decifrarão a nós, e pelos faraós que
falarão de nós, e se farão de nós pássaros de luz,
e cifrarão em nós, lundus, rondós, lindos cânticos
de Davi, e um bolero de Bach que não ouvi,
mas o vi no baque-surdo do batuque errante.
E Soronopolos apóstolo em seu túmulo nulo,
ressuscitarás entre solos de cítara, e citarás os cantos
de Pund, na conferência dos espíritos noturnos.
Nenhum anjo lerá a partitura desta música canônica,
desta única peça inconsútil (sutil como o ~ no a
da inútil palavra, João!) preenchendo o infinito.
Bendito seja isto, e tudo o que eu estudo sobre isto,
ao astro em que eu ministro o instrumento do poeta,
– o livro e a palavra, a leitura e a escrita, a labuta,
a química que me cala quando escrevo, e disto eu sou escravo!
O cravo que me prego quando Cristo eu me descrevo,
o trevo em que eu me travo no poema semiescrito,
o grito do abstrato no soneto ultraconcreto,
o credo do preciso na impureza dos meus atos.


(Athos e Aramis em arames farpados) – Eis os meus atos!
Inquietos defensores de ofendidas damas, de fodidas
damas difundidas, fundeadas em camas de camaleões
embalsamados, de leões ruivojubados e obtusos homens
cujos nomes trago ao fio executor de minha lira,
e os corpos ao porão de Le Bateau Ivre, encalhado em meu rio.
Rio de mim mesmo, mesmo me sabendo marinheiro,
o que singra essas águas, o que ruma vagas milhas,
o que sangra às nossas mágoas – o que empunha
a armorial cantiga e embainha a majestosa espada,
o que aspa as dez feridas desferidas à palavra,
o que crava, o que livra, o que livro, o que livre
lavra o epitáfio ao frio insuportável desta lápide.
A que lá... pedi aos deuses, para que descanse o teu
soneto sonolento, o teu soneto lentamente inacabado.
Rio de mim mesmo, mesmo me sabendo marinheiro,
talvez por à deriva, à proa de Le Bateau Ivre, vagar
em águas polutas à procura de letras submersas.
E Soronopolos apóstolo em seu túmulo nulo
postula-me o poeta que o enfrenta na escritura,
para traspassá-lo com um punhal de puro ouro,
e arrancá-lo o coração, e depurá-lo, e apurá-lo
num sarcófago de fogo, para a ressurreição dos infiéis.
Eis-me aqui, João! A palavra cujo ~ a deixa mais
Inútil, se sutil não cobre a laje curva de seu a.
E tu, quem és, oh, apóstolo? Aposto que tolo tu serás,
e nada és! Apenas assombras o umbral salubre do poema,
sujas a imagem das vogais que em voga não o divulgam,
crespas a aspa da palavra que o lavra em pedra-ume,
pastas com as cabras entre cobras e assombrosos vaga-lumes,
vagas entre o lume intermitente de asteriscos cintilantes,
uivas sob as ruivas cabeleiras de austeras alvoradas,


e usas contra mim a ira vã da tua espada,
afias em meu corpo o fio do áurico punhal,
e culpas outro punho, quando a isto me exponho.
E aí caro demônio, eu te domino, e canto um madrigal,
e campônio, eu não semeio o que em ti eu dissemino,
nem divido meio a meio com os mendigos no natal.
O trigo e o centeio, a intriga, o devaneio episcopal,
a epístola profana e o fanatismo da pistola,
a pústula esmola e a postura que a esmo urde o mal.
E Soronopolos apóstolo em seu túmulo nulo,
(Tumor, ou Tu mor?) só uma dúvida separa-me do teu rosto,
de resto. Eis o significado do estupendo hieróglifo,
em cada símbolo deste livro, em cada címbalo da orquestra
que nos embala e nos orquestra a castração do teu espírito.
Espalharei os teus signos por todos os pontos dessa página,
e ilustrarás novas escrituras aos pés das esculturas escrotais
à galeria dos mitos, e admitirás estar cansado de mentir,
e irás sem ira a cada mente admitir que és um outro,
e em outubro querer-me-ás o voto, (e eu pretendo um
louco, ao mundo!) não sou devoto dos teus atos ateus,
e nem dos teus retratos ao mural do Coliseu,
– e nem da tua moral – e nem da amora que
que ofereces ao amor há esta hora, e nem do polvo
em que te tornas ao entorno dos domingos, e nem dos
grãos que dás aos pombos nos escombros da aurora,
e nem da hora em que oras, e nem da era em que foras
de Hera, e convencestes Ares a destruir a Grande Tróia.
Quem crê em ti? Mesmo sendo tu um Ente sedutor.
O povo o espera lá fora, para atirá-lo pérolas,
ou para lapidá-lo. Convence-o, mostra que és um outro,
e neste outubro vindouro jubila-te, coroa-te
com o louro dessa gente, a ti oferecido de bom grado,


Ou morre triste, com uma flor entre os dentes,
– cravo de um poema tosco, espetacularmente inacabado.
E Soronopolos apóstolo em seu túmulo nulo,
a flecha passa e eu a ouço, é de aço e osso a flauta,
o anúncio, a hora de orares, de leres Max, de leres Moura,
de ires à íris de Faustino, colher Amarílis nas encostas
andinas, para dispô-los ao túmulo da tua mais amada,
e replantá-los em vasos de ouro, à luz da obstinada aurora.
O teu julgamento, a meu ver – melho tingirá o tribunal,
e será total a tua sentença, e intensa a tua dança
aos incensários chivais, bordados à toga antiga,
rés à pança meritíssima do juizíssimo final. Afinal,
a tua absolvição ab-reptícia, condenar-te-á quando
atirares répteis à promotoria, que indefesa os engolirá
e vomitará rancores sobre a mesa, e dirás ser isto a sobremesa
do impecável jure. E juro: pagarás com juros a tal injúria.
Amon não te mostrará as portas de rubi desta masmorra,
(por mais que morras!) nem fenderá a textura de tal pedra,
para que vejas Ítaca destacando-se no horizonte,
e te masturbes ao olhares Penélope rejeitando-me mil vezes.
Mil vozes cantarão nas noites seculares dos teus dias,
mil línguas falarão nos dias infindáveis das tuas noites,
mil vezes negarás a tua culpa a cúpula do rol que repudias,
e ouvirás rapsódias – odeias odes – e contarás episódios,
e pintarás zodíacos em cada um dos teus besouros,
– escaravelhos incrustados à cruz da tua medalha –
monstros em esterco de Centauros adubando o infinito,
carnívoros como a borboleta letal e a meta dessas letras,
(prenda de Hefesto defecando astros sobre o tempo
em que cumprirás a risca a tua sentença santa.)


E Soronopolos apóstolo em seu túmulo nulo,
outra era instaurar-se-á à era taurina, e outrera
será esta, em que seremos outros, e enriqueceremos,
e cresceremos irrequietos, e quais brutos impedirão a isto?
E quais antros negar-nos-ão suntuosos aposentos? E quais centros
margearão nossos espíritos, excluindo-os deste Mantro?
Viverás nesta cela de agudíssimo silêncio, e vaga-lumes carnívoros
devorarão o teu cérebro, e celebrarás a isto com fervor!
Comerás cogumelos de sangue, e um conglomerado
de estrelas infelizes sairão em tuas fezes, e tornar-se-ão vermes,
e te roerão o fêmur, – o caranguejo o espera com seu beijo! –
e mancarás neste cubículo obscuro por séculos e séculos,
sem que ninguém saiba da tua dor neste cárcere vernáculo,
sem que ninguém ouça o teu gemido neste recôndito infernal.
Dorme oh, pústula apóstolo! Não sejas tolo em apostar comigo:
Estou forte feito o besouro, e tenho Éolo ao meu lado,
uma lança de ouro, e uma harpa cujas cordas eu as fiz com os pêlos
de Penélope, e ao tangê-las, caem letras sobre os homens
e os pune, deixando-os crivados de As, entre esporas de Zes.
O que dizes? Ouvirás então o som deste instrumento?
Ou virás a desistir da aposta, apóstolo? Aposto que sim!
Posto que leias Cecim, (é necessário ler Cecim! Como é
necessário ler-se assim! Como é necessário dar-se a Circe,
para se tornar cavalo, e atingir o universo com um coice
esplendorosamente ácido, e abalá-lo, e pô-lo a baixo
num dia tempestuoso, em que todos os astros nos condenem.)
não te livrarás da perfumada angústia desta harpa,
nem de sua música-navalha a filetar-te em silêncio.
Só sentirás a dor da tua amada em posse dos Centauros,
e não farás nada, a não ser chutar o rato a roer-te a mortalha.


E Soronopolos apóstolo em seu túmulo nulo,
teus olhos se derreterão ao sol da Grécia
após a impenetrável escuridão desta masmorra,
e serás homem/mulher, (Tirésias há te levar a isto!)
ao templo de Afrodite – florlírio, a flor-hermafrodita
de Afrodite – e comerás o pólen da rosa olímpica,
e beberás o néctar da rosa olímpica, e levarás o sal
da deusa na ponta bifurcada da tua língua,
e já serpente, Ijah, a Mor sacerdotisa de Morsa,
removerá o teu remorso e o entregará a Morso, o Rei
de Morsa, que o arremessará ao espaço, onde os teus
ex-passos descansam à sombra oca do universo,
e vomitarás os pássaros sagrados, que tornar-se-ão astros,
as crianças de Tebas, que tornar-se-ão libélulas,
o cavalo de Aquiles, que tornar-se-á relâmpago,
as harpias de Ares, que tornar-se-ão bromélias,
as mulheres de Creta, que tornar-se-ão cegonhas,
e por fim, o homem-touro, que tornar-se-á profeta.
E Soronopolos apóstolo em seu túmulo nulo,
as tuas vísceras resplandecerão em Campos Elíseos,
e nascerão cogumelosdramáticos de melodiosos grãos
em teu dejeto depurado, e deles te alimentarás,
e sentirás o gosto da arte – lembrarás do sal de Afrodite –
o sabor deste poema e da carne que o envolve,
e devorarás com fervor cada símbolo desta página,
(Págaso pastando no céu, mastigou mais uma estrela)
e artívoro, vagarás de alfa a beta degustando letras,
e amarás este campo de Is que o alimenta,
e amarás quem o ara, e nele lavra amaras letras,
e seguirás pelo espaço os passos dúbios do poeta.


E Soronopolos apóstolo em seu túmulo nulo,
erguerás ao cume do Olimpo um grande templo,
onde deusas sanguinárias levarão clemência
às virgens imolandas, e abecedários mornos à tua fome.
Mastigarás de A a Z, árias inteiras, e não te engasgarás,
com Y enforquilhado, nem com K marcha soldado,
nem com X encruzilhado, nem com W entrelaçado,
nem com o ~ que cobre o a da inútil palavra, João!
Comerás isto qual a serpe de Zeus a ratazana de Caronte,
e uma vez farto, vomitarás outras linguagens
à mercê dos Três Sertões, e avistarás Quinan,
e falarás a língua das águas, e falarás a língua das pedras,
o idioma do fogo e o dialeto do caos, e caustico serás
liberto num domingo soturno, em que só tu saberás
de suas horas o tempo, e terás a eternidade
para forjares a poesia à forja fria de Hefesto,
e festejarás isto, com um estupendo manifesto,
em que desposarás as putas de Ameron ao meio dia.
E Soronopolos apóstolo em seu túmulo nulo,
a flecha passa e eu a ouço, é de aço e osso a flauta,
o anúncio – zune agudo o som da flauta
e agonia o mundo. Algo unia o mundo a
essa música? – a hora de ocultares o alvo, ou movê-lo,
– Aquiles encouraçou os calcanhares, e Jalva,
a doce alvura dos seus seios – para confundir o aço.
E então apóstolo, estás a postos? Assumirás o posto
que postulas há séculos? Disposto a expor-se
a perícia do fabuloso arqueiro, e fazê-lo errar?
Ou errarás tu, por estas páginas, obstinadamente
etéreo, como a flecha que nos caça no infinito?

Joãozinho Gomes
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