Rafael Alterio é um dos camaradas mais engraçados que conheci na vida. E quando digo engraçado não quero dizer piadista, palhaço, humorista, bobão, muito menos me refiro àqueles que se sentem no dever de ser espirituosos 24 horas por dia. Não. O Garga (pros íntimos) é NATURALMENTE engraçado. Claro que, quando está entre amigos, pode fazer as vezes de piadista, palhaço, humorista... Mas a diferença é que Rafael é engraçado ATÉ QUANDO NÃO QUER! Juro que às vezes não sei se ele está falando sério ou se está tirando onda. Figuraça! Quando estou em algum lugar e o vejo chegar, me dá uma alegria quase masoquista, pois sei que vou ser sufocado por seu abraço quebra-costelas e em seguida sua barriga vai me prensar contra a parede enquanto ele colará sua boca ao meu ouvido e, com forte respiração, me contará as últimas, sempre com aquela sua voz cantada. E vou ficar agoniado quando ele fizer aquela cara séria e, em voz pausada, me disser: "Garga... Sabe o quê que é? Eu tô com umas ideias aqui na minha cabeça... E... O negócio é o seguinte: Ô, Garga... Pres'tenção, Garga! Agora o lance é sério... A parada é assim..." E, dez minutos depois, ele ainda não vai ter me revelado nada da grande novidade, enquanto eu vou estar com a respiração entrecortada, de tanto sufocá-la à espera da revelação que irá mudar nossas vidas...
Não devia contar isso, mas é que certa noite quase fiz xixi nas calças após tê-lo ouvido lançar, quase que sem querer, uma de suas tiradas à queima-roupa. Estávamos no finado Crowne Plaza, eu na plateia, ele no palco, passando o som. Não me lembro de quem mais estava, as portas ainda não haviam sido abertas ao público, recordo-me apenas de que um percussionista (não vou revelar o nome pra preservar sua integridade) estava no palco com ele e, pra testar o microfone do pandeiro, começou a tocá-lo numa velocidade vertiginosa. O Garga esbugalou os olhos e, sem perceber que seu microfone estava ligado, antes que a frase passasse pelo cérebro, soltou: "Putz, meu, imagina esse cara tocando uma!"... A meia dúzia que acompanhava a passagem de som quase teve um troço! Outra noite, num bar em Ribeirão Preto, após termos participado de um festival, ele pediu que Kana falasse qualquer coisa em japonês e começou algo parecido com uma tradução simultânea, mas só pela sonoridade das palavras. Ficou nisso uns bons quinze minutos. Nunca ouvi tantos absurdos na minha vida. Quando saí de lá, quase que precisei de ir ao hospital recolocar o maxilar no lugar. Contudo, acho que ele, nos shows, não explora tanto essa verve cômica, talvez porque não combine com o tipo de música que faz, que de engraçada não tem nada. Mas se eu fosse seu diretor garanto que ia procurar achar uns intervalos entre as canções pra que ele desse à plateia um show à parte. Procurem no youtube a gravação dele no Jô. Quando este lhe pergunta se trouxe seu CD e ele tenta explicar o porquê de ter esquecido... Aquilo parece que foi ensaiado! Rolei de rir. Foi uma verdadeira aula de como usar o antimarketing como marketing.
A primeira grande lembrança que tenho do Garga foi de uma noite no Café do Bexiga, quando a casa ainda pertencia a um sergipano boa-praça, meu parceiro Batista. Éramos habitués do lugar, Kana chegou até a tocar lá uma época. Bons tempos... O fato é que lá estávamos, eu e Kana, tomando uma cerveja, quando vimos chegar Daisy Cordeiro com Rafael a tiracolo... Pensando bem, a Daisy com o Garga a tiracolo não é lá uma imagem das mais imagináveis, visto ser o Garga um grande cara, em todos os sentidos: por dentro, por fora, pra cima e pros lados. Reconstruamos a frase: De repente vimos adentrar o recinto Daisy Cordeiro muito bem acompanhada por Rafael Alterio. É, ficou melhor. Caímos na prosa e eis que este me puxou pelo braço com seu jeito expansivamente carinhoso e, bem próximo a meu ouvido, batucando na mesa, cantarolou uma melodia linda. E aqui faço um mea culpa: Andasse eu com um gravadorzinho à mão, teria hoje muitas mais parcerias com Rafael, pois este é um poço (sem fundo) de melodias. 99% das vezes que o encontrei, tinha melodias que estavam esperando por mim e que, como eu não estivesse pronto pra gravá-las, sacanamente entregou a outros... Mas naquela noite, graças a Deus, digo, Daisy, que tinha o bendito gravador, pude emplacar minha primeira parceria com o Gargaruzzo. Mas a coisa não foi fácil. E aqui abro espaço pra uma pequena aula de letra: O excesso de admiração por alguém pode pode ser prejudicial à parceria às vezes. A ansiedade depõe contra o resultado positivo. Daí que o pobre Leozinho comeu as migalhas do pão que o diabo amassou pra acertar a letra. Fez a primeira, o Garga disse: "Do caralho!". Mas não era. Tentou melhorá-la, piorou. Resumindo: a parceria estava fadada ao fracasso até certo dia em que Kana disse: "Léo, faz a letra pensando em mim, pois eu quero gravar essa canção". E foi o que fiz. Pedi que ela me fizesse uma gravação cantando a melodia e, assim, ouvindo sua voz, meu cérebro pensou que a melodia era dela, e, como estava acostumado a letrar suas melodias, a letra saiu num piscar de olhos astigmáticos. Nasceu enfim Mais Um, que Kana gravaria em seu segundo disco, Imitação, com gentil participação do próprio Rafael. Depois disso não me "assustei" mais ao receber (bissextamente) as gargomelodias.
Mas nem todas eram pra rolar. Há uma história que só não teve um fim trágico porque o destino não o quis. Tive uma ideia que nasceu da sonoridade das palavras: "Pruquê que tu tá tão seca/ parece um mandacaru/ tu que era bela bisteca/ pruquê que seca ta tu?". Desenvolvi o tema numa folha de papel (dei-lhe o título de Vacas Magras), pu-la no bolso e saí pro saudoso Villaggio Café, quando este ainda ficava no Bixiga. Acho que era um show da Daisy ou da Márcia Salomon, não lembro ao certo, pra variar (já repararam que minhas memórias são de uma exatidão ímpar, não?), mas o fato é que lá estava o Garga também, e, findo o show, ficamos numa mesinha na calçada até altas horas. De repente, lembrei-me da letra e mostrei-a a Daisy. Ela adorou e passou o papel ao Garga. Este, quando a leu, faltou pegar o papel e mastigá-lo. Foi imperativo: “Garga, esta é minha e ninguém tasca!”. Dobrou o papel em quatro partes e o guardou no bolso do casaco. Ainda tive forças pra avisar que não tinha feito cópia, se ele quisesse eu lhe enviaria depois. Foi taxativo: “Não!”. Na manhã seguinte, tocou o telefone. Era o Garga. Tive um mau pressentimento que se confirmou quando ele me avisou afobadamente que não sabia onde raios tinha metido a letra e pediu que eu lhe mandasse novamente. Senti-me como se um raio me fulminasse. Não tinha cópia nem me lembrava da letra. Por sorte, lembrei-me dos versos iniciais. Partindo deles, tentei reconstruí-la, mas acabei fazendo outra, que ficou boa também, porém a original se perdeu pra todo o sempre. Dessa vez, salvei-a no computador antes de lhe mandar por e-mail. Durante um tempo, encontrei-o muitas vezes, e a cada vez ele me cantarolava uma parte da melodia. Mas o processo era lento e a canção não avançava (Rafael é do time do Rondon, cada cajadada é uma melodia, mas entregue-lhe uma letra...). Camalle, que conhecia a letra, vivia me pedindo pra que o deixasse musicá-la. Como eu já havia ouvido a (meia) melodia do Garga e gostara, sempre respondia com uma negativa. O tempo passou, os anos passaram, Camalle veio morar um tempo em minha casa, e o destino tratou de resolver o problema por mim. Certa manhã Camalle acordou, viu que eu não estava e aproveitou pra procurá-la na pastinha verde (outra, não aquela primeira) na qual eu guardava minhas letras. Na época, embora eu já tivesse computador, tinha o hábito de imprimir tudo e guardar na bendita pasta. Encontrou-a. Quando cheguei, ele me lançou um sorriso enigmático, pediu que eu me sentasse, pegou o violão e a letra e começou a cantar uma canção que me levou às lágrimas. Tive que procurar forças pra ligar pro Rafael e desincumbi-lo da empreitada. Em se tratando de parceria musical, embora não o estipulemos, há um prazo de validade pra que uma canção nasça. Como numa velha história de Tom Jobim, Rafael disse "vou te contar", mas quem acabou contando foi Camalle. Nem todo dia a maré está contra o peixe.
O Garga é sempre um bom assunto. Quando penso nele, muitas histórias me vêm à mente. Ele gosta de falar, eu gosto de escrever, daí, se não me policio, faço deste texto uma Bíblia. Pra encurtar a prosa, basta dizer que Rafael Alterio é um dos meus compositores prediletos. Suas melodias sempre têm a capacidade de me emocionar. E, embora não seja um grande cantor, é um excelente intérprete que sabe extrair o máximo de sua voz, que, se não é uma grande voz, ao menos é charmosamente original. De lambuja, o Garga teve o raro privilégio de ter uma canção sua gravada por ninguém menos que Chico Buarque. Trata-se de Meia Volta*, parceria sua com Cristina Saraiva, gravada pelo sr. Hollanda no disco Só Canção, desta. Por falar em Cristina, Rafael tem a felicidade de ter a seu serviço um time de craques letristas de dar inveja a qualquer Barcelona. A começar por sua esposa, a bonita por dentro e por fora Rita Alterio, camisa 10 da seleção garga. Com ela Rafael fez mágicas tabelinhas que são verdadeiras obras-primas do cancioneiro brasileiro e ganhou muitos campeonatos, digo, festivais. Tirante Rita, capitã e titular absoluta, o Garga tem a mão revezando-se entre o banco e os gramados craques como Celso Viáfora, Juca Novaes, Edu Sant(h)ana, Kléber Albuquerque, Élio Camalle, e a própria Cristina Saraiva, entre outros de drible fácil e poesia nos pés. Por último, ao lado do banco, petecando com os gandulas, o centroavante grosso, que além do mais está no jejum de gols, Léo Nogueira, que ainda teima em jogar nem que seja os minutos finais de alguma partida menos importante com a camisa da seleção da Gargolândia. E olha que as chances estão cada vez mais remotas. Como seus filhos Pedro e Gabriel também são músicos de fino trato com a pelota e têm apresentado ao(s) pai(s) uma nova safra de jovens craques de deixar Neymar humilde, vem contratação nova por aí, e eu, Ronaldo dos pobres, acima do peso e chegando aos 40, ando pensando que a qualquer momento terei que pendurar as chuteiras e procurar nova profissão, talvez a de comentarista esportivo num desses programas de tevê a que ninguém assiste, como o Ninguém me Conhece, do canal O X do Poema.
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Tenha a sorte de ouvir algumas estrelas da constelação sonora de Rafael aqui: http://clubecaiubi.ning.com/profile/OXdoPoema
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*A canção Meia Volta, cantada por Chico é a quinta do player.
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Leia as letras aqui:
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