terça-feira, 26 de outubro de 2010

Ninguém me Conhece: 19) A Marca Registrada de Clarisse Grova

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Foi na Sala Funarte, aqui em Sampa. Fui, a convite de Daisy Cordeiro, ver um show de Rafael Alterio e Cristina Saraiva. O convidado de Rafael era o excelente pianista André Mehmari, já Cristina, letrista não-cantora, convidara pra interpretar suas canções uma moça vinda, como ela, do Rio. Uma tal de Clarisse Grova. Tudo ia bem até que essa mulher resolveu abrir a boca. Rapaz, fui acometido por uma série de sensações, todas hiperbólicas. Foi amor à primeira vista. Da plateia, remexia-me no assento, ofegava, enfim, não conseguia crer no que presenciava, arrepiado do couro cabeludo à unha encravada, sonhando em ter um dia aquela voz a serviço de minhas palavras. E pensei: como vivi até hoje sem saber que existe uma cantora assim no Brasil?

Findo o show, tive a inusual cara de pau de ir até o camarim, e não foi preciso nem gaguejar, seu olhar encontrou o meu, e ouso dizer que "pintou um clima", rolou uma química, eu era o zangão-poeta pronto pra morrer (viver) de amor e música, e ela, a abelha-rainha do clã das notas afi(n)adas. De repente, soltou: "Mas você também é do ramo, não?". Quando respondi que era letrista, ela me apertou a mão e pediu: "Manda pra mim uma letra. Vamos ser parceiros". Então me disse que, após muitos anos como apenas intérprete, sentira necessidade de usar sua voz a serviço também das próprias canções, então estudara violão e começara a compor. Trocamos e-mails, ela voltou pro Rio, e eu, pro Jabaquara. Já em casa, na mesma noite, enviei-lhe uma letra. O tempo passou e nada de resposta. Nessas horas acabamos caindo na velha armadilha do preconceito. Disse pra mim mesmo: "Tinha que ser carioca! Só tem garganta!". Aproximadamente um mês depois do show, abri meu e-mail e lá estava uma mensagem dela na qual pedia desculpas pela demora e mandava em anexo a gravação de minha letra por ela musicada. Lindamente! Lembro que Adolar estava em casa e também ouviu, admirado, em primeira-mão, o nascimento dessa vitoriosa parceria.

De lá pra cá foram cerca de 40 canções! E vejam que, quando uma coisa funciona, está acima das distâncias. Encontrei-me pessoalmente com Clarisse pouquíssimas vezes na vida. No entanto, quem ouve pensa que compomos lado a lado, tal a sintonia a que chegamos. Uma canção nossa, em especial, obteve elogios rasgados de Zé Rodrix. Outro Zé, o Edu Camargo, ao ouvi-la, não se conteve e me confessou: "Cara, essa mulher canta com o útero!". A canção em questão chama-se Roma. Há uma longa história a respeito de sua feitura. Um dia conto. O que gostaria de relatar agora é que a ouvi ao vivo pela primeira vez certa ocasião, interpretada pela própria Clarisse, no Rio, numa casa chamada Panorama, então uma espécie de Caiubi carioca. Aliás, ouvimos, Kana estava comigo e foi testemunha de que o que se passou comigo ali, naquela casa, naquela noite, foi algo muito próximo do êxtase. Meu ego de compositor raras vezes se sentiu tão massageado. Vi a plateia (sobretudo a feminina) cantando com ela, a plenos pulmões "Eu desejava ter um Nero/ E que pra ele eu fosse Roma". Nessa mesma noite conheci Marianna Leporace, que aniversariava, e mais muita gente boa da M-Música. E, pra torná-la perfeita, Clarisse me apresentou a Tavito, que me deu o primeiro de seus muitos largos abraços e, ao pé do ouvido, disse-me: "Léo Nogueira, sou seu fã!". Ainda bem que o homem era forte e o abraço, idem, pois por uma fração de segundo senti que o chão me escapulia dos pés. Como diria Rondon, "é felicidade demais"!

A voz de Clarisse me inspirou a escrever muitas letras, como poderei dizer?, buarqueanas. Ou seja, com o eu-lírico feminino. O já citado Zé Edu, ao ouvir Hiroshima, uma de minhas parcerias com La Grova que mais têm agradado, escreveu um e-mail na tribuna do Caiubi que guardo carinhosamente até hoje (e que me pode servir de prova contra ele) no qual deu o segunte depoimento, um tanto exagerado pelo calor do momento: "Cheguei a uma conclusão: Hiroshima, de Léo Nogueira e Clarisse Grova, é a melhor música já feita desde a criação do universo".

Com minha mania de agregar, acabei apresentando Clarisse a muitos belos parceiros, como
Lúcia Santos, Adolar Marin, Lis Rodrigues, Marcio Policastro e Élio Camalle. Com este, compusemos Coragem, canção que dá título a seu primeiro disco inteiramente autoral, em fase de finalização. Fase BEM BAIANA de finalização, acrescento. Com toda a calma do mundo. Termina aí, Clarisse, pô!

Mas Clarisse é muito mais. Tem uma longa carreira, sua voz já esteve a serviço da nata da música brasileira, tanto nos palcos como em discos. Além disso, gravou seu primeiro disco (um LP!) pela EMI-Odeon com arranjos de um tal de César Camargo Mariano, que ninguém conhece, e chegou mesmo a gravar um CD com canções dos novatos Cristóvão Bastos e Aldir Blanc a convite deles, CD este que ganhou elogios de meio mundo. Com o compositor Felipe Radicetti gravou um CD em dupla chamado SuperLisa, lançado até no Japão por nosso amigo Vasco Debritto. Ruy Castro, por exemplo, inexperiente jornalista e pesquisador musical que escreveu só uma meia dúzia de livros sobre música brasileira, arrematou: "Uma das últimas cantoras puras do Brasil".

Tenho que confessar que, se tivesse tido tempo ou curiosidade pra pesquisar a seu respeito antes de dar o primeiro passo em sua direção naquela noite, as pernas teriam pesado mais e cada passo a frente teria sido acompanhado de dois atrás num um-pra-lá-dois-pra-cá capenga, fosse eu um bêbado com chapéu-coco como o daquela canção. Graças a Deus, minha ignorância me salvou. E sua simpatia. Uma artista com esse curriculum vitae… tornar-se parceira fiel (quase) de um cara da plateia não é todo dia que acontece. Nem em todo show. Quando penso naquela noite e em sua postura, fico pensando em como no meio artístico atual sobram Marias e faltam Clarisses... no solo do Brasil, meu Brasil.


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Ouça algumas das marcas registradas de Clarisse aqui.

Leia as letras aqui.Clarisse também está no Caiubi.


Por Léo Nogueira - http://www.oxdopoema.blogspot.com/

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