sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Ninguém me Conhece: 18) A Febre de Fernando Cavallieri

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Quando tinha por volta de 13 anos, num jogo de futebol de salão, dei um drible que fez fulano perder o rumo de casa (é, já dei minhas cacetadas), e este, pra se sentir vingado em sua honra, confundindo futebol com boxe, numa pancada certeira, fez-me beijar a lona (que não havia). A brincadeira custou-me uma fratura no braço esquerdo, duas semanas de gesso (durante os quais a régua foi minha espada vingadora contra a implacável coceira) mais sessões de fisioterapia.
Desta experiência, trouxe uma peculiaridade que, contra a minha vontade, fez-me aprender a reparar nas diferenças: acostumei-me a usar o relógio no pulso direito, gostei, e mantenho o hábito até hoje. Porém, no âmbito da sociedade, a diferença, por vezes, chega a parecer aberração, pois o cidadão é educado pra ser igual e, instituído do direito à igualdade, acha que o certo é que todos pensem/ajam como ele. Eu mesmo, durante o período escolar, fazia de tudo pra esconder minha origem cearense (cheguei a, inconscientemente, forçar a perda, ou melhor, troca do sotaque) e meu fanatismo por Roberto Carlos (primeiro ídolo), tudo no intuito de ser popular, ser igual, ser mais um, fazer parte da “tchurma”. Crescido, longe das salas de aulas, aprendi a defender minhas características, peculiaridades, esquisitices, enfim, tudo o que até hoje forma o que sou, ainda que em construção. Este preâmbulo um tanto improvisado foi apenas o meio que achei pra apresentar Fernando Cavallieri.

Sim, Fernando Cavallieri, ou simplesmente o Cava (pros íntimos). Um cara que aprendeu a tocar violão com este de cabeça pra baixo, sem, contudo, inverter-lhe também as cordas. Vou explicar melhor: como há mais gente no mundo destra que canhota, tudo é feito pensando nessas pessoas. Com o violão não é diferente. Um professor destro, seguindo uma partitura pra destros, dá aulas a um aluno destro. Quando calha de o aluno ser canhoto, este inverte as cordas, de maneira a parecer que, quando está diante de um professor, olha prum espelho. Cava até chegou a ter aulas dessa forma, mas preferiu obedecer a sua naturalidade e, em vez de inverter as cordas de seu violão, inverteu a posição de seus dedos, criando acordes que, embora pareçam esdrúxulos, possuem a sonoridade necessária pra que sua harmonia flua naturalmente.

Mas não sou músico, repito o que me ensinaram apenas. Vamos, pois, ao Cava: Conheci-o praticamente na mesma época em que comecei minha parceria com
Adolar, todos nós outros pertencentes então à RSMB de Madan (ver texto sobre Adolar). Contudo, apesar de eu e Cava termos desenvolvido fortes laços de amizade, com este a parceria não decolou, ficando sempre ao rés do chão. As letras que eu mandava pra Adolar (e as melodias que este me incumbia de letrar) transformavam-se rapidamente em canções, ao passo que com Cava o mesmo processo resultava lento e infrutífero. Não porque lhe faltasse capacidade, pelo contrário, quando uma letra lhe toca a alma, extrai dela uma belíssima canção, como no caso de Febril, letra de Zé Edu Camargo pela qual Cava se apaixonou a ponto de musicá-la em minutos, aos prantos. Não, definitivamente o problema não era a falta de talento. Quando muito, seria de química, talvez. Quem sabe as letras que eu lhe enviava não eram pra ser musicadas por ele. Muitas delas viraram bonitas canções nas mãos de compositores outros, como foi o caso de Hiroshima, parceria minha com Clarisse Grova (contei essa história aqui).
O fato é que o fracasso da parceria fez nascer em mim sentimentos nada apreciáveis, como inveja, mágoa e rancor, sentimentos estes que se intensificaram quando Cava me presenteou seu terceiro CD, o excelente Inefável. Dentro do encarte, ele, carinhosamente, fez uma montagem com as fotos dos parceiros e músicos que participaram do disco. Confesso que não ver minha foto ali entre tantos rostos conhecidos foi uma experiência traumática. E ainda mais por ter resultado num CD excepcional, o qual eu, meio que de forma masoquista, ouvia e reouvia à exaustão.

Há coisas que não se podem explicar com palavras, tão inefáveis como o disco de Cava. Nossa parceria faz parte desse conjunto de coisas. Freud explica, Shell responde (by
Vlado). Em contrapartida, nossa amizade já nos regalou momentos de celebração da mais pura cepa. Entre tantos momentos, destaco um aniversário de Cava que comemoramos dentro de seu carro, em pleno estacionamento do Pão de Açúcar, eu, ele e Camalle (ou teria sido no carro deste?). Tomamos vinho, comemos, no lugar de bolo, salgadinhos, proseamos, emocionamo-nos... Memorável noite. Estávamos próximos à minha antiga residência, porém, dado o avançado da hora, pra não atrapalharmos o sono da beleza de Kana, optamos por permanecer ali mesmo. Quando a companhia é boa e está presente a arte do encontro (by Vinicius), as coisas ao nosso redor sofrem uma transformação que as melhora.

Se, no entanto, minha parceria com Cava não evoluiu, tive ao menos a felicidade de intermediar uma belíssima parceria dele com
Camalle. Deu-se assim: na época, Camalle morava em minha casa. Chegou certa noite encantado com uma letra que Cava lhe enviara. Mostrou-ma. Era, com efeito, muito inspirada. Na manhã do dia seguinte, confessou-me: “Léo, desgostei da letra”. Passadas algumas horas da impressão primeira, encontrara nela algo que o incomodou, mas não sabia exatamente o quê. Tomei-lhe a letra das mãos, li-a duas ou três vezes e cheguei à conclusão de que o verso derradeiro era supérfluo, redundante mesmo, na letra. Dei-lhe a ideia de que ele experimentasse lê-la sem ele. A mágica se deu. No mesmo dia nascia O Olho do Furacão, das mais belas do repertório de ambos.

Cava é um artista completo. Baita músico; grande cantor (inclusive, é muito bom também quando escolhe cantar canções alheias. Até o apelidei de Elisregino); versátil na composição, seja fazendo música e letra sozinho, seja letrando melodias alheias ou mesmo musicando letras dos mais diversos letristas (excetuando as deste escriba. Mas estou sendo maldoso. O que falta à nossa parceria em quantidade sobra em qualidade. O problema é que, se é do humano querer sempre mais, com o compositor então...). No mais, Cava é um branco de olhos claros que ataca muito bem no samba. Aquele filtrado pela bossa, claro.

Eu teria muito mais a escrever a respeito do moço, mas seria abusar da boa vontade de vocês. Por ora, basta acrescentar que Cava é dos primeiros que romperam de vez com a indústria, chegando mesmo a se autopiratear em vez de se submeter às condições “salgadas” de prensagem. Lembrando que, quantos mais discos são prensados, mais barata fica a unidade. Ou seja, proporcionalmente falando, prensar cem mil cópias é muito mais barato que prensar mil, este número bem mais próximo à nossa realidade. Cava prensa 50, 30, 20, de acordo com a demanda. Além disso, é autor de versos como “Você deu samba e muito mais./ Vai procurar os seus direitos autorais”, “Eu falo braille ao seu ouvido cego”, e, entre tantos outros, estes mortais: “Eu rezo pelo dia em que o Bem se levante/ e mande o Mal à lona num letal nocaute/ Como o Mal, se exima de ser elegante/ que vire o tabuleiro e lhe dê xeque-mate”. Touché!

Quem avisa amigo é: o texto acaba aqui. Peço aos lúcidos que vão lá embaixo clicar no link (que frase feia!) e ouvir as canções do moço. Aos desvairados, deixo como bônus texto que escrevi em 14/04/2006, quando do lançamento do Inefável:

INEFÁVEL

O que dizer sobre o Inefável? O que dizer, se é inefável? Tudo bem, vou falar sobre ele falando sobre mim. Eu cresci. Sim, senhor. E do alto do meu metro e pouco de homem feito, asseado e barbeado, pude observar lá embaixo, “no chão sob os meus pés”, aquele menino nu que fui, comendo terra com as mãos pra alimentar seu ego, ego este que tinha mais a ver com uma solitária do que com o ego em si. E enquanto esse menino mastigava a terra, esfregava os olhos, criando barro por meio do contato das mãos imundas com as lágrimas do rosto. Menino mau, mau menino! Ora segurava com a mão esquerda (destro que é) o encarte daquele CD.
Olhava hipnotizado as mandalas e jogava mais terra goela abaixo, remelento e com o nariz a escorrer lava. Gania e chorava e pedia peito de mãe, indignado por o CD ser tão bom. Se fosse uma droga, ao menos a solitária roncaria menos, devoraria menos vísceras, de dentro de seu buraco negro. Mas não, o CD tinha que sair assim tão bom? A sensibilidade tinha que falar assim tão alto aos ouvidos de uma criança? Esse cantante tinha que soltar sua voz “febril” cada vez melhor, atirando cada palavra na cara dos ouvintes como se fosse a última a sair de sua boca? Não, ele não tinha esse direito. Não fez “sua boa ação do dia”, “inesgotável, insuportável, insustentável, inconsolável”… O menino, “numa água de dar dó”, sonhava ser “homem”, enquanto misturava “capim” à terra que ingeria. Enquanto ouvia “sempre te direi que vai dar”, simplesmente não dava! “Mirando um céu de estrelas” coloridas, enxergou a sua, apagada, que não estava mais lá. O menino, tão jovem, não sabia que podia gerar dentro de suas entranhas tamanho sentimento incontrolável de inveja criativa. Ouvia aquele puto e sua trupe estelar estalar suas bem resolvidas notas em seus tímpanos sujos sem cotonete de mãe. Não, não era um “cisco no olho”, era uma “tarde nebulosa” que teimava em não passar. Ele, menino “sórdido”, mau menino, regando seu tumor pra se “vivificar”. Quem disse que era “a hora errada”? Por que só pra ele era a hora errada, enquanto pra todos os outros era a hora certa? Via aquele trem ir embora e sumir no horizonte deixando-o ali, só, nu, com sua solitária a lhe causar câimbras. Ele, menino bem alimentado e que acreditava em “Papai Noel”. “Qual nada”! Aquele menino se expunha ali por inteiro, na frente de todos e de ninguém, com sua solitária etíope (ou seria nordestina?) maior que ele, em seu parco tamanho, não cabendo em si e arrotando arrogância… Viu, menino? Isso é pra você aprender que existe um universo girando além do seu umbigo e enquanto você fica aí “se achando” vai se perdendo. Você, cigarra que não canta. Qual cigarra qual nada! Você não passa de uma formiga preguiçosa. Cigarra são aquelas que lá se vão, naquele trem, que labutam enquanto cantam. Enxugue as lágrimas, menino! E, já que você comeu terra e da terra fez barro, volte ao barro de onde veio e cresça e apareça! Esse bichinho dentro de você é apenas uma lombriga, mas se você estiver atento aos sons inefáveis e aos seus tons geniais ao seu redor, quem sabe um dia esse pequeno monstrinho possa ainda se transformar numa linda borboleta…
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Ouça algumas das febris canções do Cava aqui.
Leia as letras aqui.Cava também está no Caiubi
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