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MARACANGALHA
(Dorival Caymmi)
Eu vou pra Maracangalha eu vou,
Eu vou de uniforme branco eu vou,
Eu vou de chapéu de palha eu vou,
Eu vou convidar Anália eu vou.
Se Anália não quiser ir eu vou só
Eu vou só, eu vou só,
Se Anália não quiser ir eu vou só,
Eu vou só, eu vou só,
Sem Anália mas eu vou...
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Então, foi assim...
O escritor Rubem Braga dizia que na Bahia existem três ritmos: o lento, o muito lento e o Dorival Caymmi1 – um tempo devagar quase parando, quase meditativo, sem ansiedade. O mais ranzinza de todos os velhinhos cariocas, também conhecido como O Urso, Rubem Braga admirava a calma e a serenidade folclórica do amigo baiano que compunha a partir de inspirações repentinas, mas que ia lapidando devagar, burilando artesanalmente.
Se Dorival não ostenta quantidade – cerca de 100 composições apenas – em contrapartida exibe qualidade. Só compôs obras-primas, esculpidas com a paciência de um velho mestre.
Mas, pelo menos uma obra fugiu à regra e fluiu rapidinho, letra e música, embora o mote tenha nascido muitos anos antes: Maracangalha.
A canção tem uma história divertida. Zezinho, amigo de infância de Caymmi, quem o inspirou. Aliás, foi com Zezinho, ainda adolescente, que ele começou a tocar sambinhas inspirados na espontaneidade do povo baiano e nas festas de rua.
Zezinho, com o pretexto de sair de casa para se encontrar com uma amante em outra cidade, dizia para a mulher dele: “Eu vou pra Maracangalha”2, onde supostamente fazia negócios. Caymmi ficou apaixonado pela sonoridade da frase.
Uma tarde, em 1955, segundo Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello3, Caymmi estava em casa, na Rua Cesário Mota Júnior, em São Paulo, pintando um auto-retrato, quando de repente, veio-lhe à lembrança a frase de Zezinho. Caymmi começou a cantarolar, música e letra nascendo ao mesmo tempo:
“Eu vou pra Maracangalha, eu vou
Eu vou de liforme (uniforme) branco, eu vou
Eu vou de chapéu de palha, eu vou...”
Quando Caymmi chegou à parte que diz ‘Eu vou convidar Anália’, uma vizinha, Dona Cenira, apareceu na janela e perguntou para D. Stela, esposa dele:
“- Dona Stela, o que é que seu Dorival está cantando aí, tão bonitinho?”
“- Caymmi, Dona Cenira quer saber o que é que você está cantando?” – transmitiu D. Stela.
“- Estou fazendo uma música que fala de um sujeito, que sai de casa feliz para se divertir. Ele vai para Maracangalha, vai convidar Anália...” – respondeu Caymmi.
“- E por que o senhor não põe Cenira no lugar de Anália?” – sugeriu a vizinha inconveniente.
“- Fica pra outra vez Dona Cenira...” – disse Caymmi se desculpando.
“Aí não dava mais pé”, completa o compositor, fechando as portas para a intromissão da vizinha em sua obra. Assim nasceu Maracangalha, sem maiores pretensões, de uma só vez. Nasceu e ficou engavetada até o ano seguinte, quando o compositor voltou para o Rio de Janeiro e a gravou na Odeon, em 1957, no LP Eu Vou Pra Maracangalha, com grande sucesso, que se estendeu ao carnaval.
Um fato curioso da carreira de Caymmi é que, na década de 1960, em função de uma crise de hipertensão, ele e a esposa Stela ficaram internados em uma clínica de repouso na Baixada Fluminense, que tinha o nome de Maracangalha, em homenagem à música. É que a vida de artista impôs a ele um grande desgaste. O excesso de trabalho noturno, associado a uma vida boêmia regada a altas doses de álcool, cigarro e uma alimentação desregrada, resultaram em hipertensão e estresse.
Maracangalha foi regravada dezenas de vezes. Destacam-se os registros de Tom Jobim, CD Antônio Brasileiro (1994); Leandro Braga, CD Pé na Cozinha (1998); Cláudio Nucci, CD Ao Mestre com Carinho (2004) e a regravação em família no CD Para Caymmi, de Nana, Dori e Danilo – Ao Vivo (2004).
1 30/4/1914 Salvador-BA.
2 Um lugarejo na Bahia também conhecido como Cinco Rios, onde funcionava uma usina de açúcar homônima, fechada
em 1987.
3 A Canção no Tempo: 1958-1985, v. 2.
Ruy Godinho
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