segunda-feira, 28 de março de 2011

RUY GODINHO - ENTÃO, FOI ASSIM?

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MALANDRAGEM
(Cazuza/Roberto Frejat)

Quem sabe eu ainda sou uma garotinha
Esperando o ônibus da escola sozinha
Cansada com minhas meias três quartos
Rezando baixo pelos cantos
Por ser uma menina má
Quem sabe o príncipe virou um chato
Que vive dando no meu saco
Quem sabe a vida é não sonhar
Eu só peço a Deus
Um pouco de malandragem
Pois sou criança
E não conheço a verdade
Eu sou poeta e não aprendi a amar
Bobeira é não viver a realidade
E eu ainda tenho uma tarde inteira
Eu ando nas ruas
Eu troco um cheque
Mudo uma planta de lugar
Dirijo meu carro
Tomo o meu pileque
E ainda tenho tempo pra cantar
Eu só peço a Deus
Um pouco de malandragem
Pois sou criança
E não conheço a verdade
Eu sou poeta e não aprendi a amar
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Então, foi assim...
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A vida já aprontou muitas com a cantora e compositora Ângela Maria Diniz Gonçalves, que por conta de sua voz rouca recebeu o apelido de Ângela Ro Ro. Mas, ela também já aprontou com a vida. E num caso particular, Ro Ro fez questão de se penitenciar ostensivamente diante do público: “Fui uma imbecil, uma burra de recusar essa música! Como é que eu não pensei
nisso?” Aí fez um dramático mea culpa por ter desprezado Malandragem, feita sob medida por Cazuza e Roberto Frejat, especialmente para ela, mas que foi gravada por Cássia Eller.
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Essa história me foi contada pelo cantor e compositor Roberto Frejat1, na mesa de uma pizzaria em Brasília2, rodeado pelos músicos Rênio Quintas, Tibério Gaspar, Eduardo Camenietzki, a produtora Elizabete Braga e amigos ao final de um dia de andanças pelo Congresso Nacional, Procuradoria da República e Ministério da Cultura, em defesa das causas da categoria. Frejat, além de artista e um ser humano especial, é também um dos líderes do Fórum Permanente de Música do Rio de Janeiro.
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Malandragem tem uma história curiosa. Em 1988, Ângela Ro Ro estava gravando o LP Prova de Amor e solicitou a Cazuza3 e Frejat que fizessem uma música pra ela. Os dois aceitaram a encomenda, mas demoraram a compor. Quando ficou pronta, eles foram entregar, mas Ângela já estava mixando o disco e ficou por isso.
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Frejat comenta que “quando o Ezequiel [Neves] começou a assessorar o produtor Guto Graça Melo na escolha de repertório para um disco da Cássia, ele me procurou e perguntou se eu tinha alguma coisa que pudesse sugerir. Eu disse pro Zeca que tinha uma música que eu fiz com o Cazuza, que a gente fez pra Ângela e ela nunca gravou. E a única pessoa que eu conseguia ver cantando essa música hoje, além da Ângela, seria a Cássia. Foi feita pra Ângela, está com ela. Mas, eu não sei se ela quer gravar. Eu falei: vou falar com a Ângela e vamos ver. De repente a Ângela nem tem a possibilidade, nem um projeto, nenhuma perspectiva de gravar agora.”
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Era uma situação delicada, praticamente pedir a música de volta, mas como já tinha se passado seis ou sete anos, Frejat ligou pra Ângela:
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“- Oi Ângela, tudo bem? Você lembra daquela música Malandragem, que eu e Cazuza fizemos pr’aquele seu disco, que a gente mandou pra você, que você iria gravar e não deu? E aí?
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- E aí? Ele não te falou não?” [Detalhe: Cazuza já havia desencarnado na época].
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“- Não, não me falou nada.
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- Eu achei a música uma merda! Esse negócio de meia ¾, garotinha? Imagina se eu sou uma garotinha e vou usar meia ¾? Essa música não tem nada a ver comigo!”
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Frejat ficou meio passado com aquela reação bombástica. “Você faz uma música de presente e leva uma cacetada, mas quem conhece a Ângela sabe que é tudo latido de cachorro. Porque ela é um doce.”
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“- Eu posso pegar essa música e dar pra uma outra pessoa?” – Frejat não disse pra quem.
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“- Lógico. Pode!” – respondeu Ângela Ro Ro, descartando a música de vez.
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Frejat não teve mais dúvidas, passou-a para Cássia Eller e o resultado foi o estrondoso sucesso.
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Perguntei a Frejat se o sucesso não teria a ver também com a interpretação de Cássia, a marca da instigante agressividade que ela imprimia em todas as músicas que cantava. “Eu acho que não é uma questão de interpretação”, respondeu. “Ângela é maravilhosa, a música foi feita pra ela. De certa maneira o personagem da música coube tão bem pra Cássia porque a Cássia é herdeira da Ângela numa certa persona, aquela coisa da loucura, do certo tipo de recado mais áspero. E tem essa coisa bluseira também. Eu acho que a Ângela, desde a época que a gente fez a música e deu pra ela, não teve um momento de exposição como a Cássia. No momento em que entra esse disco que o Guto Graça Melo fez, o projeto era transformá-la numa cantora pop. E Malandragem era perfeita porque era um personagem que se encaixava perfeitamente. Dificilmente você veria uma mulher cantando: Quem sabe o príncipe virou um sapo que vive dando no meu saco... Uma mulher cantando uma frase dessa, tem que ser uma Ângela Ro Ro ou uma Cássia Eller e acho que isso deu muita força pra música também. A Cássia estava no momento dela e essa música era o instrumento que ela precisava para aparecer. Por não ser uma compositora, ser uma intérprete, ela precisava de um repertório que desse um conteúdo coerente com ela. Por isso que foi importante na trajetória dela.”
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Cássia Eller gravou Malandragem três vezes: no disco Cássia Eller, de 1994, produzido pelo Guto Graça Melo, Cássia Eller ao Vivo, de 1996 e Acústico MTV, de 2001. Em todas elas foi usada como música de trabalho.
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Frejat teve oportunidade de cantar Malandragem junto com Ângela Ro Ro, a musa inspiradora. Antes, ela fez uma reverência carinhosa à Cássia Eller, depois a cantou maravilhosamente. “Porque ela continua a ser merecedora da música, apesar da Cássia ter gravado”, finaliza Frejat.


1 21/5/1962 Rio de Janeiro-RJ.

2 Bate-papo com o autor em abril de 2006, em Brasília.

3 Agenor Miranda de Araújo Neto 04/4/1958 Rio de Janeiro-RJ 07/7/1990 Rio de Janeiro-RJ.
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Ruy Godinho
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