sexta-feira, 25 de março de 2011

Ninguém me Conhece: 41) Madan, Raridade

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Já comentei aqui várias vezes a respeito daquela reunião no apartamento em que vivia Élio Camalle, quando estive de penetra numa reunião de artistas da Dabliú Discos e conheci, entre outros, Kléber Albuquerque, Márcia Salomon, Fernando Forni (Daisy Cordeiro também estava, mas eu já a conhecia)... Pois bem, entre eles estava também Madan, compositor que se dedica à difícil arte de musicar poemas. A primeira impressão que tive dele foi de que era um camarada altivo. Alto, elegante, cabelos longos e barba por fazer à la Mickey Rourke, não era exatamente bonito, mas transpirava charme, classe. Simpatizei com ele na hora, embora tenha notado que a recíproca não foi verdadeira.

Camalle me emprestou seu primeiro CD e, admito, foi a última vez que ele o viu. Não que eu o tenha roubado. Roubo é uma palavra muito forte. Digamos que eu, sabedor da desorganização que acomete meu parceiro, resolvi guardar o CD pra ele. Assim, na hora em que ele precisasse, saberia onde encontrá-lo (o que fatalmente não ocorreria se estivesse em seu poder). Além do mais, cultura tem que ser compartilhada, e eu, bom divulgador, converti não poucas pessoas ao "madanismo", tendo sido eu o primeiro convertido.

É que é muito fácil gostar da música de Madan. Sua escola folk-roquenrol, mesclada às referências brasileiras, deu-lhe bagagem pra desenvolver uma sonoridade própria, única, que, no mais, deixa bem à vontade seu abençoado timbre. E Madan não complica. Deixa a complicação (se é que há) a cargo dos poemas que musica. Acho mesmo que ele devia se especializar em realizar oficinas de composição direcionadas à arte de musicar letras. Aliás, musicar letras é até fácil, pois, se o letrista é esperto e tem o cacoete do negócio, já entrega ao melodista de bandeja meia música, ou seja, versos bem metrificados, as sílabas tônicas das palavras numa cadência aconselhável, enxuga os plurais e demais fonemas que possam causar incômodo na hora de cantar etc. Já o poeta não tem nenhuma obrigação em relação às técnicas que citei acima. Afinal, poesia é uma arte que acaba em si. Por isso a tarefa de Madan é das mais complexas. E ele a desempenha com maestria e simplicidade, como se fosse fácil. Tomemos como exemplo Dona Doida, de Adélia Prado; Frei Tito, de frei Betto; Ashell, Ashell pra Todo Mundo, Ashell, de Elisa Lucinda, entre outros. O resultado harmônico leva a crer que a melodia nasceu antes da letra/poema, o que não é verdade. Há muitos talentosos compositores que não conseguem musicar letra nenhuma. Assim sendo, nesse quesito Madan é mestre (conheceria tempos depois, em Montevidéu, uma compositora chamada Samantha Navarro, que lançara um CD chamado Poemas e tinha a mesma desenvoltura de Madan em lidar com tal arte)!

Naquela época eu era dado a cultivar ídolos, e passei a admirá-lo como a um Chico ou um Tom. Cheguei ao extremo de compor vários "poemas", cheios de cabecismo e pseudointelectualismo, no intuito de tê-lo como parceiro, aproveitando-me de nossa relativa proximidade. Mas a cada novo "poema" recebia dele uma nova negativa. Fiquei realmente frustrado, diria mesmo quase traumatizado, por não conseguir enredá-lo, o que era razoavelmente fácil com meus demais parceiros. Foi então que o destino veio em meu auxílio. Uma das maiores qualidades de Madan sempre foi o senso coletivo. Daqui a pouco darei um ótimo exemplo. Por ora digo que tal qualidade o motivou a criar um grupo virtual de música chamado RSMB (Rede Solidária da Música Brasileira - veja texto sobre Adolar Marin), do qual fez parte muita gente boa, como Adolar Marin, Élio Camalle, Sonekka, Ricardo Soares, Dhara Barros e muitos outros. Posso mesmo afirmar que a RSMB foi uma espécie de pré-Caiubi. E foi justamente nesse grupo, interagindo com seus membros, dialogando, opinando, "parceirando", que fui minando as resistências de Madan. Sem que eu notasse, lá estávamos nós horas ao telefone, filosofando, dando risada, trocando conselhos. Foi Madan quem me apresentou à literatura e ao pensamento de Osho, controverso filósofo indiano. Foi Madan também quem, certa vez, após mais uma desilusão amorosa, perguntou-me: "Léo Nogueira, você que é um poeta, que tem a sensibilidade à flor da pele, me diga o que é o amor! Pra que ele serve?". Como tampouco eu soubesse, fiz como os bons terapeutas, respondi-lhe com uma série de indagações (só que em forma de poema) e tasquei-lhe o título O Amor e Outras Inutilidades:

Eu não sei nada do amor/ E o amor, de mim, não sabe/ Pra que ele serve? Onde vou pôr,/ Se não me ferve e não me cabe?/ Se tem alguém aí, me salve!/ Não tá nos livros da estante/ Não tá na net ou no mercado/ Não tá no corpo da amante/ Se tava aqui, eu fui roubado/ Quero ao amor ser condenado!/ Será uma invenção de Deus?/ Mas, se até Deus foi inventado?/ Será que nasce com o adeus?/ Estará longe ou do meu lado?/ Se ele é um vício, eu tô curado!/ De que me adianta saber tudo,/ Fazer canções, ser bom amigo,/ Se meu coração vive mudo/ Não fala aos outros, nem comigo/ Quero sentir, correr perigo!/ Não me disse o psiquiatra/ Não li na bula do remédio/ O tiro saiu pela culatra/ Se era amor, se tornou tédio/ Plantei uma flor, cresceu um prédio./ Se não o descobrir, eu morro/ Só aprendi a sentir dor/ Em vão eu grito por socorro/ Alguém me ame e, se não for/ Amor, me ame por favor!/ Se tem alguém aí.
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Madan praticamente o recebeu cantando. Estava finalmente inaugurada nossa primeira parceria. Nesse momento eu reaprendi o que já sabia, mas teimava em esquecer: As canções feitas com verdade, saídas do coração, são as mais certeiras. Enquanto quis atingir o cérebro de Madan, falhei. Mas quando entrei em sintonia com seu coração, o que parecia uma rocha intransponível virou papel. A partir daí fizemos outras, frequentei sua casa, ele, a minha. E constatei realmente que, embora passional (ou por isso mesmo), seu coração era (é) dos mais nobres.

Eis agora o exemplo de que falei acima (antes disso - abre parêntesis, lembrei-me de outro exemplo, do qual, aliás, sou gratíssimo: Madan, sem ganho nenhum, intermediou o primeiro show de Kana no Centro Cultural de São Paulo, show este que foi um sucesso e propiciou muitos outros, inclusive o de lançamento do novo CD dela, agora em maio - fecha parêntesis): Foi justamente ele o elemento de agregação de um grupo que por um bom tempo varreu pra longe o pó da mesmice no cenário musical paulistano: o 1 do 1 do 1. Formado por ele mais Élio Camalle mais Kléber Albuquerque mais Luiz Gayotto, o 1 do 1 do 1 nasceu de uma ótima ideia, os quatro cavaleiros de um apocalipse (que não veio) se uniram pra gravar um CD ao vivo na virada do milênio, no estúdio XRBM, um projeto da Dabliú Discos. Uma plateia de fãs e afins foi previamente selecionada pra assistir a esse momento histórico, que seria o primeiro show do milênio. No repertório, só canções dos quatro, ora solo, ora em parceria. Por uma ironia do destino (e de um marketing salvador), o show de lançamento do aguardado CD só ocorreria em 02/02/2002, não por culpa dos rapazes - diga-se de passagem -, que nesse tempo andaram fazendo um (bom) barulho por aí. Juntos, ganharam um espaço na mídia que nunca lhes abrira as portas antes. E sou capaz de jurar que, juntos, abririam outras portas mais. Porém, o que sobrava no meu 4+1, faltava a eles: parceria. E não só no sentido musical. Pra resumir, cada qual pegou o seu "1" e foi cada um pro seu lado. Acompanhando tudo razoavelmente de perto, percebi que Madan era o único que verdadeiramente queria continuar com a trupe. Mas um Madan só não faz serão... Aliás, faz, mais aí serão outros serões.

Por falar nisso, Madan anda mesmo sumido dos palcos. Nestes últimos anos tem se dedicado a terminar seu mais recente trabalho, que traz no repertório nossa O Amor...; mas Madan ataca em várias frentes, seu trabalho anterior, o elogiado Brincando com Palavras, foi confeccionado todo sobre poemas infantis de José Paulo Paes, chegando mesmo a ser finalista na categoria melhor CD infantil do Prêmio Tim 2006. Madan,dos nossos, de longe é o que tem maior número de parceiros conhecidos. Inclusive, duas das canções mais bonitas do repertório de Arnaldo Antunes foram poemas deste musicados por Madan: Dúvida e Deus. Se eu fosse o tribalista ex-titã já teria há muito gravado essas preciosidades. Custava? Todos sairiam ganhando. E Madan bem que é merecedor desses direitos autoraizinhos. Outra oportunidade perdida foi Madan não ter mostrado à produção do filme Batismo de Sangue (inspirado no livro homônimo escrito por frei Betto) sua Frei Tito. Nesse caso, o vacilo foi dele, pois bem que eu o tinha avisado logo no começo das gravações desse filme. Mas Madan não está muito preocupado com essas coisas. Agora mesmo deve estar meditando em cima da geladeira, impávido e sereno, como se estivesse sobre um dos picos do Tibet.
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Ouça algumas raridades de Madan
aqui.
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Leia as letras aqui.
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Madan também está no
Caiubi.
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Por Léo Nogueira
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