segunda-feira, 14 de março de 2011

RUY GODINHO - ENTÃO, FOI ASSIM?

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ESSA MULHER
(Joyce/Ana Terra)

De manhã cedo essa senhora se conforma
Bota a mesa tira o pó lava a roupa seca os olhos
Ah! como essa santa não se esquece
De pedir pelas mulheres pelos filhos pelo pão
Depois sorri meio sem graça e abraça
Aquele homem aquele mundo que a faz assim feliz
De tardezinha essa menina se namora
Se enfeita se decora sabe tudo não faz mal
Ah! como essa coisa é tão bonita
Ser cantora ser artista isso tudo é muito bom
E chora tanto de prazer e agonia
De algum dia qualquer dia entender de ser feliz
De madrugada essa mulher faz tanto estrago
Tira a roupa faz a cama vira a mesa seca o bar
Ah! como essa louca se esquece
Quantos homens enlouquece nessa boca nesse chão
Então parece que acha graça e agradece
Ao destino aquilo tudo que a faz tão infeliz
Essa menina essa mulher essa senhora
Em quem esbarro a toda hora
Num espelho casual
É feita de sombra e tanta luz
De tanta lama e tanta cruz
Que acha tudo natural
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Então, foi assim...

A tão propalada jornada dupla que algumas mulheres se submetem todos os dias, desdobrando-se entre o trabalho profissional e o doméstico, acabou virando uma bela peça musical na junção da letra de Ana Terra1 e da música de Joyce2.

A letrista, escritora e produtora Ana Terra conta que escreveu a letra numa noite em que estava super cansada. “Eu tinha passado o dia cuidando da casa e das crianças, sentia falta do Danilo (Caymmi), meu marido na época. Ele estava há vários dias longe, em excursão pelo Nordeste com o Bituca (Milton Nascimento), quando fazia parte da banda como flautista. Devia estar me sentindo como inúmeras mulheres que têm que dar conta de muitas atividades. Depois que as crianças dormiram, tomei banho e me olhei casualmente no espelho do banheiro. Meu rosto parecia cansado e gasto, dei um sorriso e me vi muito jovem. Minhas expressões se alternavam e tive a exata sensação de que eu era três mulheres.”3

O mais interessante é que essa sensação de ser múltipla a remetia à Bahia mística, a uma revelação que lhe foi feita em um terreiro de candomblé. “Quando estive no Gantois, levada por Stella e Dorival [Caymmi], Mãe Menininha jogando búzios me disse que eu tenho três Orixás de frente e todas mulheres: Oxum, Iemanjá e Nanã. Acho que naquele momento em
que escrevi a letra senti a presença desses três arquétipos femininos.”

Mas, voltemos ao momento do parto. Ana deitou-se no sofá com lápis e papel e começou a escrever:

“Essa menina, essa mulher, essa senhora

Em quem esbarro a toda hora num espelho casual,

É feita de sombra e tanta luz,

De tanta lama e tanta cruz,

Que acha tudo natural...”

Exatamente os versos da parte final da letra, que depois foi burilada e recebeu um início e um meio.

“Quando Danilo voltou de viagem mostrei para ele. Até então ele era meu único parceiro”, afirma. “Ele começou a musicar, mas pela primeira vez achei que a música dele não tinha a ver com a minha letra. Tentei explicar isso com delicadeza dizendo que talvez só uma outra mulher conseguisse perceber o que eu estava sentindo”. Danilo compreendeu e superou.

Como nada acontece por acaso, no dia seguinte a cantora e compositora Joyce passou na casa deles para tratar de um assunto com Danilo e Ana teve a intuição de que seria ela. “Timidamente mostrei a letra. Joyce a levou e no dia seguinte me ligou dizendo que a música estava pronta.”

Ficou tão bonita que Joyce não perdeu tempo em mostrá-la para a cantora Elis Regina, que se preparava para lançar mais um LP. Elis gostou tanto da música que a escolheu como título do disco (Essa Mulher, de 1979). “A gravação da música foi num clima de muita emoção. A Elis entendeu tudo”, comenta Ana emocionada. Joyce, por sua vez, a gravou no LP Feminina, lançado em 1980.

Essa Mulher foi apenas o início da parceria de Ana Terra com Joyce, que nos presenteariam ainda com Da Cor Brasileira, Banho-maria, Dançarina do Ar, Golpe de Amor, Guardados, Lado do Avesso, Luz do Chão e Mais Uma Vez, Mais Uma Voz.

1 Ana Maria Terra Borba Caymmi 20/5/1950 Rio de Janeiro-RJ.
2 Joyce Silveira Moreno 31/01/1948 Rio de Janeiro-RJ.
3 Entrevista concedida ao autor, em março de 2006, por e-mail.
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Ruy Godinho
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