quinta-feira, 17 de março de 2011

Ninguém me Conhece: 38) Daniel Gonzaga, um Homem Melhor de Ideia

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A primeira vez que ouvi falar de Daniel Gonzaga foi num especial da Rede Globo em que ele apareceu, tímido, um tanto inseguro, cantando Sangrando, do pai Gonzaguinha. Tímido, sim; inseguro, sim; mas muito parecido com o pai, sobretudo no timbre e na firmeza da voz, que naquele momento parecia não lhe pertencer. Não tive como não me emocionar. De repente, atrás dele desceu um telão e lá estava o velho Luiz Gonzaga Jr. sangrando com o filho, num tardio dueto. Aí foi impossível conter o pranto. Naquela noite eu não imaginava que nossas vidas ainda iam se cruzar.

Voltando no tempo, lembro-me perfeitamente de outro dia em que fui levado às lágrimas. Minha mãe, como de costume, lavava a roupa ouvindo no rádio (era na AM) o programa de Eli Correa. Eli, com seu jeito exagerado, aliás, não muito diferente do de outros apresentadores de AM, de repente começou a contar quase berrando como se dera o acidente que vitimara de modo fatal o cantor Gonzaguinha. Não sei se foi seu jeito de dar a notícia ou se foram os primeiros versos de O Que É O Que É, entoados pelo autor na sequência, mas o fato é que entrei num pranto convulsivo que durou um tempo infindável. Já gostava de Gonzaguinha quando (pra mim) Chico não passava de uma banda e Caetano, de um cara sem lenço e sem documento. Jobim, então, nem existia. Daí o desespero do pranto, que foi dos maiores que já me acometeram, superior ao da morte de Senna, por exemplo.

Cinco anos depois Daniel Gonzaga lançava seu primeiro disco, Sob o Sol. Ouvi em algum lugar a canção Poeira e, por causa dela, só sosseguei quando adquiri o disco. Descobri então um compositor muito diferente daquele tímido e quase doce rapaz do especial da Globo. O compositor de Sob o Sol era árido, intempestivo, indagador. O DNA não lhe passara imune. O rapaz já chegava dizendo a que vinha; em vez de renegar o pai, expunha-o (e a si): "Eu não nasci, fui consequência de uma vida que meu pai não escolheu/ A culpa não é minha, o sonho continua sendo meu/ Amigo, me diz o quê que eu faço aqui"; em vez de esconder seus medos, punha-os na vitrine, com a coragem que só sabem ter os que temem: "Às vezes eu e o meu medo/ Rezamos juntos por conseguir o direito de morrer mais cedo". Na primeira canção de seu primeiro disco já mostrava que por ali vinha chumbo grosso!

Então ele veio a Sampa, e nossa incansável
Daisy Cordeiro - que, sempre atenta aos bons compositores, já o conhecia - terceirizou-o, levando pra cima e pra baixo, apresentando-o a uma série de pessoas, entre elas, Élio Camalle. O encontro de dois compositores de verve não podia passar em branco, obviamente. Daniel, que sempre fora (e continua sendo) um compositor solitário (como fora o pai), mostrou a Camalle uma inacabada canção que foi um prato cheio pra que este a concluísse. Quando Camalle me mostrou Mambembe, o resultado daquele encontro, vi que nascia ali uma pérola de nosso cancioneiro. Infelizmente Daniel nunca a gravou, e Camalle, tomado por uma estética pop que dominou seu segundo CD, Cria, acabou transformando a parceria de tal modo que ficou irreconhecível. Aquela dor pungente e ao mesmo tempo lírica não sobreviveu ao arranjo "conceitual". Não é que tenha ficado ruim. Pra quem nunca ouviu a canção tal qual foi concebida, não estava mal, porém pra mim, que a ouvi "no berço", a versão do disco não me convenceu. Tanto que, no lançamento do Cria, no Sesc Pompeia, pro qual Daniel veio do Rio fazer uma participação, ambos esqueceram o arranjo e se entregaram à emoção original.

Então eu e
Kana fomos ao Rio, onde encontramos Daisy, que também estava por lá, e foi justamente por mãos dela que fomos parar no bairro de Humaitá, mais especificamente no apartamento de Daniel. Deparei-me com um rapaz imperscrutável, de olhos que fitavam um ponto num horizonte invisível enquanto seu dono se esforçava por prestar atenção numa conversa que deveras não lhe interessava. Não chegava a ser antissocial, era até simpático, mas, quando abria a boca, dificilmente conseguia não ser vago. Tentei achar o ponto franco, a parte mais rasa do fosso que me permitisse penetrar em sua fortaleza, mas não obtive êxito. Essa parceria me escapou. Va bene, não podemos ganhar todas... O mais engraçado (ou seria triste?) é que tenho certeza de que ele, mais que não se lembrar de mim, nem sequer deve se lembrar daquele dia. E o pior é que ainda tive comichões ao deparar-me com Noel Rosa - Uma Biografia, de João Máximo e Carlos Didier, livro que eu procurava havia séculos e que encontrei ali, largado sobre um móvel qualquer num canto de sua sala. Faltou pouco pra eu ter uma recaída e ser acometido pelo vício infantil do furto (na época eram gibis em bancas de jornais). Contive-me, contudo.


Não nos cruzamos mais. Acompanhei sua sossegada trajetória à distância, mas atento. Veio seu segundo CD, menos inspirado, mas igualmente ácido, Os Passos na Passarela, de 1998, em seguida um disco em homenagem ao pai e ao avô, que não me interessou muito, visto que o que dele eu queria ouvir era seu trabalho autoral. Esse disco me pareceu um acerto de contas com seu passado, pra que ele pudesse zerá-lo e, por fim, amadurecido, lançar seu melhor trabalho, Areia, de 2004, este, sim, uma obra-prima! Nele Daniel explora a urbanidade do pai mesclada com a sonoridade nordestina do avô. E consegue, filtrando essas duas referências, construir uma sonoridade sua, verdadeira, original. É um disco repleto de canções de grosso calibre, literalmente, como nos versos da canção Beijo (nada a ver com a homônima de
Kana), "Comprei um revólver pra poder te dar um beijo [...]/ Hoje, meu irmão, é de coração/ Eu quero liberdade pra pisar o pé em cima do chão/ E ser um homem melhor de ideia/ E talvez um homem um pouco mais sereno de coração/ Comprei a arma para ver se sobrevivo e/ desarmo essa armação [...]". A maturidade chegou a um compositor sem rabo preso, sem compromissos alheios à arte que exerce e exercita. Claro que, como não sou crítico, não pretendo que minha opinião seja mais que puro achismo. Ah, seu novo disco, Comportamento Geral, é inteiramente dedicado às canções do pai. Claro que ninguém mais do que ele tem o direito de gravar um disco somente com canções de Gonzaguinha. Da mesma forma, eu tenho o direito de aguardar, pois, o próximo. Até porque, musicalmente falando, prefiro as leituras às releituras.

No percurso de Daniel, cheguei a pensar que ele, como mais um artista filho de artista, cedo ou tarde acabaria se aproximando da turma da Trama. Mas Daniel não é dado a andar em bandos (o que eu já devia ter percebido). Ele, sim, estaria sendo verdadeiro se intitulasse algum trabalho seu de O Bloco do Eu Sozinho. Mas... Quer saber? Acho que sozinho ele está muito bem acompanhado.

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Por Léo Nogueira

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