sábado, 21 de março de 2009

O POVO DO BELO MONTE VIII - Brás Teodoro

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A tristeza por Anabel. Nem lembrava de quando me contou do desquite, do filho perdido e da culpa que sentia por tudo isso. Ela chorava uma emoção de tristeza - diferente de quando viu um de meus trabalhos - que continha tanta nostalgia. Parecia parir toda dor que eu embalava, calando a minha.



Como não a vi por muitos dias pensei: teria me contado coisas que não queria? O bilhete que encontrei na cozinha com um volto logo esclareceu e me mostrou o quanto eu iria sentir sua falta. Parecia que uma parte de mim tinha sido arrancada sem deixar cicatriz, um mais profundo. E foi assim que, naqueles dias, na sua ausência derramei a poesia das minhas lembranças, enlouquecendo a loucura.

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E eles vinham aos poucos e me levavam para a lembrança de suas vidas me dando as mãos e contando:


– Sou Maria de Sassá, trocada em menina por favorecimento no dolo do pai com um poderoso do lugar. Vivi alguns anos nas terras do Mutacará, existindo só para a boca e a conformação, longe de qualquer tipo de afeto, servindo com o tempo todo da vida e com o viço que o meu corpo ganhava nos anos.


Afora a boa lembrança já quase apagada da infância, rezas e brincadeiras que restavam embaralhadas na saudade, meu único bem lembrar foi o dia em que o Beato passou e deixou muitas palavras ressoando no meu pensamento. A ele, fui apontada como sobrinha, sozinha no mundo, acolhida ali.


Como se nascesse na infância de novo, nunca me lembrava de ter visto na vida um homem de Deus que aparentasse o comum dos homens; que falasse com simplicidade da fé, nas pessoas e no alcance que qualquer um tinha com seu trabalho.


Na secura dos dias e da caatinga, a pregação do beato foi deixando nascer um outro tipo de conformação e o mesmo que alguma alegria nas pequenas coisas do meu todo dia.


Num deles, aconteceu de repente: lidava com a borrega no cercado quando percebi vindo de toda direção, um enxameado de homens bem armados atirando pra todo lado. Foi o tempo de me agachar saindo das vistas. Dali, assisti ao bando confirmar a punhal todas as mortes, uma por uma. Exceto o grito de surpresa e alguma reação pouca, o que ouvi foi um comando para que todos saíssem e esperassem no mato. Daquele que falava, só via o tronco emoldurado pela janela; as mãos lavravam um pedaço de pau como se brincasse naquela hora; parecia fazer uma cunha de madeira para cravar no peito de Quelém; aquele era só com ele, dizia a voz profunda e pungida. Esperei tremendo o corpo todo.


Ouvi a mesma voz gritar para Quelém: - seu filho duma égua! - Que tirasse a roupa toda, ficasse nu que iam ter uma conversa comprida.


De onde estava, mal respirava com medo de ser descoberta, mas via por entre a cerca; meus olhos gastavam a coragem que parecia não ter; iam de ponto a ponto da cena ouvindo a voz ser obedecida por Quelém, nu, encostado no gaveteiro, abrindo a gaveta e enfiando as partes dentro, obedecendo.


Quando achei a fresta para melhor ver, as costas do poderoso sangravam nas picadas da lambedeira imputadas pelo chefe daquela chusma. Com o orgulho massacrado pela firmeza das ordens dadas, não obedecia sem entender. Tentava falar alguma coisa, argumentar, saber o porquê daquele ataque e era imediatamente calado pelo aço picando as costas.


Até então não tinha visto Lineu de frente, agora via fechando a gaveta, esmigalhando no canto os testículos de Quelém; aproximou-se do móvel pelo outro canto onde cravou as pequenas cunhas no encaixe da gaveta, batendo com a mão de pilão até lacrar. No outro canto gemendo a maior das dores, Quelém parecia um animal. Só aí pude ver melhor seu rosto mirrado num olhar frio e impassível, esperando os gritos ressoarem para começar a falar abaixando a voz.


Pausadamente, contou quem era e por que estava ali; deu o nome da mãe violada e morta, com detalhes até de como ficou cada corpo estirado no chão, do pai, dos irmãos, da avó sangrada doente dentro da rede. Repetiu imagens e palavras nunca esquecidas durante mais de vinte anos; o quanto esperou a vingança, o quanto foi difícil depois de saber onde vivia Quelém como homem honrado depois de abandonar a vida de bando; agüentar os dias todos de preparar seu ódio para o dia e a hora. Essa chegada, sem pressa, ia falando lentamente que não o mataria. Ia deixar para sua escolha como seria sua morte, única benevolência na vingança sonhada.


De onde estava, vi quando ele fincou a lambedeira no móvel ao alcance da mão de Quelém pálido de dor. Sumiu das vistas até recender no ar a fumaça com cheiro de couro queimado. Apareceu mais uma vez no vão da janela, desejando a Quelém toda a dor do mundo - se resolvesse usar o punhal sem corte ou se preferisse que se matasse antes de começar a queimar ali mesmo- e que o inferno lhe fosse tanto quente quanto eterno.


As labaredas quase tomavam a casa toda quando Lineu ainda jogou o pote d’água no gaveteiro para que ele queimasse por último saindo correndo por entre as chamas. Parou no terreiro e se benzeu sem se virar.


De onde estava, me enchi de coragem e, num ímpeto, segui ele de longe pelo meio da caatinga.


- Com Lineu, um dia levamos nossas vidas pro Belo Monte. Terminou de contar.


Eu estava com eles quando entraram no santuário vazio àquela hora; rezaram entrecortando silêncios num jeito de fé, querendo viver uma vida diferente.

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MQ
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