terça-feira, 10 de março de 2009

O POVO DO BELO MONTE VI - Brás Teodoro

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Um outro não sei o quê invisível me toma novamente a razão, e uma batalha se instala dentro do meu coração; viro o combate e o combatente, canto a derrota e a sagração. Um lugar, um vago lugar de emoção transpassa minha carne, ilude meu pensamento, e sei que traz um pouco de morte, e sei que quero um pouco de dor. Porque morrer só nas lágrimas não sustenta minha angústia.
Repenso a vida toda que vivi... vou pelo vago, não me era ali. Sei que reinvento gestos de amor e me finjo poeta para estar com Anabel e seu amor, o invisível me toma; mas me toma incompleto. O irreal está dentro mais real e, ao mesmo tempo, é o que não acredito ter sido. As Bachianas entram pelos meus poros, quadro a quadro reinvento minha vida. Do que me lembro? O que esqueço? Joana e os carinhos adolescentes que ensaio no pensamento para Anabel foram reais? Vilarina e a luxúria do seu corpo, foram? E Mariana e suas excentricidades? Isabel com a sensualidade à flor da pele? E Natália foi maternal? Elza e seus mistérios... Eulália, indecisa e amorosa... E Rosa com seu jeito embriagador? Foram reais? Amei, será, todas essas mulheres?
O invisível me possuía e se revelava num canto, escondendo a silhueta das prostitutas que andaram por minha vida. Era mais real essa lembrança que não tinha forma nem nomes? Ou eram apenas gestos de angústia, impregnados em mim, deixados pela vida agora, servindo para compor meu sonho de amor com Anabel? Vivia embaralhando a premonição de mais puro amor, mesmo mutilado. Essa era a minha verdade sentida.
Vivia, naqueles dias, da morte na vida do povo do Belo Monte e da vida do que já morrera em mim, renascendo na lembrança para fingir o amor por Anabel e me sabia fingindo o meu mais real. Olhava a flacidez do meu corpo no espelho; entendia as marcas e minha loucura rasgava cada cicatriz e se colocava sem a carne com vigor e suavidade; me entregava, em pensamento a Anabel. Só assim, revivendo, consegui viver.

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Meus pensamentos me punham no Belo Monte e a dormência no corpo vinha devagar tomando conta, vagava pela desgraça de Eulina.
- A viveza do animal dá nos olhos. Vige! Exclamava Sinício enquanto soprava a tiborna - é animal veaco, sem lida. E continuou tomando a garapa, olhando o cavalo comendo a quixabeira. Leonino descarregava a mandioca do surrão e pedia ajuda pra suxar a cangalha e curar a sarnéia do jumento muito judiado nas ribanceiras e na passagem do sangradouro. Vinham da apanha no tabuleiro, passaram pelo Trabubu na casa de Carmela, irmã de Sinício. Lá ajudaram na limpa, na arranca e trouxeram a fartura.
- Esse animal bebe em qualquer parte? Perguntou o vaqueiro, sem maldar. A ofensa deu na brabeza do dono do animal; primeiro de mando entre eles e as armas estralejaram um tiroteio envolvendo até a mulher e os filhos de Leonino.
O mal falado assinou a sentença dos dois agregados e a expulsão sumária da família com os dois defuntos. Não teve acerto de contas. De lá só levaram os teréns e o jumento, nem enterro foi consentido fazer. O cortejo seguiu à boca da noite, a viúva com um de colo e os outros filhos carregando as redes com os dois mortos. Segui com eles o caminho, noiteiro daquela novena de dor e cansaço. No entrar na estrada do Calumbi demos com gente do Belo Monte e com o humano do sertão.

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Perdidos na zelação do gado ouvimos ao longe a voz do sino marcando a viração da tarde. Joca deu ponto no virar a cabeça, em tento com o mato, moitedo de tingui pondo amarelo nas folhas, viçando seu veneno e o céu nuvioso prometendo chuva, aluímos pro descampado. O latido acompanhou o sinete de Lau enquanto Zé Severo vexado trancava o lado acabramando o espaço da rês tungando o aponto do rumo. Desperdemos do destino; agora era só o finar das horas; entregar o gado e receber a paga no confio do trato.
Daquela vida nosso melhor valor ficava perdido na vontade do dono de quase todas as terras que davam nas vistas; era ele quem escolhia como pagar. Gente igual, de fama e muito compadrio, era só o que demais tinha no sertão. Possuir nosso suor por via da polícia e dos alugados era todo dia. Por isso, depois dessa desobriga, tomamos nosso destino em de junto com o Conselheiro aqui no Belo Monte.
Antônio Breu passava a mão na cabeça do cachorro e contava aos companheiros em volta do fogo na vigília das horas. De onde estava sentia o olhar miúdo do cão acompanhando minha curiosidade. Era como se ele pudesse saber o que eu sentia.

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Comecei ouvir sobrepondo ao silêncio pesado que aquele momento retinha a música cantada por muitas vozes. A sensação era a mesma, nem sabia como o papel-barro vinha parar pronto nas minhas mãos, nem como chegavam aqueles seres, o relevo na tela que fui traçando os colocava reais na sala. Ana das Letras enumerava quem era cada um.
- É o nosso povo, trouxe pra conheceres... Caluta... Beleléu... Bendegó... Curuna... Benícia... Tifio... Anunciada ... Pé de Côco... Severina... Severo Dias... Zé Sereno...
Todos sorriram, olhando os quadros secando nos cavaletes. Contemplaram suas fisionomias nascidas das minhas mãos e voltaram a cantar sobrepondo um contracanto na Bachiana que começava a tocar na vitrola.
Um instante de explosão houve dentro do meu corpo como se, estilhaçado, houvesse me transformado naqueles seres. Agora, um suor misturado ao meu choro, juntando morrer e nascer num só. Uma seca rompendo minhas lágrimas e eles cantando e tentando aparar com as mãos frações delas que ressecavam antes das palmas. Assim me conduziram.

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MQ
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