quarta-feira, 4 de março de 2009

MACHADO DE ASSIS

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Machado de Assis
- Gazeta de Notícias - 13/09/1896


DIZEM DA BAHIA que Jesus Cristo enviou um emissário à terra, à própria terra da Bahia, lugar denominado Gameleira, termo de Orobó Grande. Chama-se esse emissário Manuel da Benta Hora, e tem já um séquito superior a cem pessoas.


Não serei eu que chame a isto verdade ou mentira. Podem ser as duas cousas, uma vez que a verdade confine na ilusão, e a mentira na boa-fé. Não tendo lido nem ouvido o Evangelho de Benta Hora, acho prudente conservar-me a espera dos acontecimentos. Certamente, não me parece que Jesus Cristo haja pensado em mandar emissários novos para espalhar algum preceito novíssimo. Não. eu creio que tudo está dito e explicado. Entretanto, pode ser que Benta Hora, estando de boa-fé, ouvisse alguma voz em sonho ou acordado, e até visse com os próprios olhos a figura de Jesus. Os fenômenos cerebrais complicam-se. As descobertas últimas são estupendas: tiram-se retratos de ossos e de fetos. Há muito que os espíritas afirmam que os mortos escrevem pelos dedos dos vivos. Tudo é possível neste mundo e neste final de um grande século.

Daí a minha admiração ao ler que a imprensa da Bahia aconselha ao governo faça recolher Benta Hora à cadeia. Note-se de passagem: a notícia, posto que telegráfica, exprime-se deste modo: "a imprensa pede ao governo mandar quanto antes que faça Benta Hora apresentar as divinas credenciais na cadeia..." Este gosto de fazer estilo embora pelo fio telegráfico é talvez mais extraordinário que a própria missão do regente apóstolo. O telégrafo é uma invenção econômica, deve ser conciso e até obscuro. O estilo faz-se por extenso em livros e papéis públicos, e às vezes nem aí. Mas nós amamos os ricos vestuários do pensamento, e o telegrama vulgar é como a tanga, mais parece despir que vestir. Assim explico aquele modo faceto de noticiar que querem meter o homem na cadeia.

Isto dito, tornemos à minha admiração. Não conhecendo Benta Hora, não crendo muito na missão que o traz (salvo as restrições acima postas), não é preciso lembrar que não defendo um amigo, como se pode alegar dos que estão aqui acusando o padre Dantas, vice-governador de Sergipe, por perseguir os padres da oposição. Em Sergipe, onde o governo é quase eclesiástico, não há necessidade de novos emissários do céu; as leis divinas estão perpetuamente estabelecidas, e o que houver de ser, não inventado, mas definido, virá de Roma. Assim o devem crer todos os padres do Estado, sejam da oposição, ou do governo, Olímpios, Dantas ou Jônatas. Portanto, se alguns forem ali presos, não é porque, unidos no espiritual, não o estão no temporal. A cadeia fez-se para os corpos. Todos eles têm amigos seus, que o acompanham no infortúnio, como na prosperidade; mas tais amigos não vão atrás de uma nova doutrina de Jesus, vão atrás dos seus padres.

É o contrário dos cento e tantos amigos de Benta Hora; esses com certeza vão atrás de algum Evangelho. Ora, pergunto eu : a liberdade de profetar não é igual à de escrever, imprimir, orar, gravar? Ninguém contesta à imprensa o direito de pregar uma nova doutrina política ou econômica. Quando os homens públicos falam em nome da opinião, não há quem os mande apresentar as credenciais na cadeia. E desses por três que digam a verdade, haverá outros três que digam outra cousa, não sendo natural que todos dêem o mesmo recado com idéias e palavras opostas. Donde vem então que o triste do Benta Hora deva ir confiar às tábuas de um soalho as doutrinas que traz para um povo inteiro, dado que a cadeia de Orobó Grande seja assoalhada?
Lá porque o profeta é pequeno e obscuro, não é razão para recolhê-lo à enxovia. Os pequenos crescem, e a obscuridade é inferior à fama unicamente em contar menor número de pessoas que saibam da profecia e do profeta. Talvez esta explicação esteja em La Palisse, mas esse nobre autor tem já direito a ser citado sem se lhe pôr o nome adiante. Os obscuros surgirão à luz, e algum dia aquele pobre homem da Gameleira poderá ser ilustre. Se, porém, o motivo da prisão é andar na rua, pregando, onde fica o direito de locomoção e de comunicação? E se esse homem pode andar calado, por que não andará falando? Que fale em voz baixa ou média, para não atordoar os outros, sim, senhor, mas isso é negócio de admoestação, não de captura.


Agora se a alegação para a captura é a falsidade de um mandato deduz-se da opinião dos homens, e estes tanto são veículos da verdade como da mentira. Tudo está em esperar Quantos falsos profetas por um verdadeiro! Mas a escolha cabe ao tempo, não à polícia. A regra é que as doutrinas e às cadeias se não conheçam; se muitas delas se conhecem, e a algumas sucede apodrecerem juntas, o preceito legal é que nada saibam umas das outras.

Quanto à doutrina em si mesma, não diz o telegrama qual seja; limita-se a lembrar outro profeta por nome Antônio Conselheiro. Sim, creio recordar-me que andou por ali um oráculo de tal nome mas não me ocorre mais nada. Ocupado em aprender a minha vida, não tenho tempo de estudar a dos outros; mas, ainda que esse Antônio Conselheiro fosse um salteador, por onde se há de atribuir igual vocação a Benta Hora? E, dado que seja a mesma, quem nos diz que, praticado com um fim moral e metafísico, saltear e roubar não é uma simples doutrina? Se a propriedade é um roubo, como queria um publicista célebre , por que é que o roubo não há de ser uma propriedade? E que melhor método de propagar uma idéia que pô-la em execução? Há, em não me lembra já que livro de Dickens, um mestre-escola que ensina a ler praticamente; faz com que os pequenos soletrem uma oração, e, em vez da seca análise gramatical, manda praticar a idéia contida na oração; por exemplo, eu lavo as vidraças, o aluno soletra, pega da bacia com água e vai lavar as vidraças da escola; eu varro o chão, diz o outro, e pega a vassoura, etc., etc. Esse método de pedagogia pode ser aplicado à divulgação das idéias.

Fantasia, dirás tu. Pois fiquemos na realidade, que é o aparecimento do profeta de Orobó Grande e o clamor contra ele. Defendamos a liberdade e o direito. Enquanto esse homem não constituir partido político com seus discípulos, e não vier pleitear uma eleição, devemos deixá-lo na rua e no campo, livre de andar, falar, alistar crentes ou crédulos, não devemos encarcerá-lo nem depô-lo. O caboclo da Praia Grande viu respeitar em si a liberdade. Se Benta Hora, porém, trocando um mandato por outro, quiser passar do espiritual ao temporal e...

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