sábado, 14 de março de 2009

O POVO DO BELO MONTE VII - Brás Teodoro

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Um recém estiado céu deixava a manhã de sol entrar, mas as réstias pareciam turvas; sombras dançavam nas faces que lotavam a Igreja Velha contestando valimento mas, obedecendo à submissão do Beato à missão dos padres apresentados; pareciam arredados do divino que habitava o altar, baldando a fé de todos; eram vistos apontando castigos trazidos dos consistórios onde o Belo Monte era descrito nas conveniências e logros.


Os olhares dos que esperavam os sacramentos do batismo para os filhos eram de obediência embaçada. Entravam de tantos em tantos, tirados da multidão que esperava sua vez. O frade olhava sem entender algumas famílias trazerem, além da criança, uma imagem de santo ou santa e ficava espantado de como todos se dirigiam a Antônio Conselheiro. Olhava o piso da igreja sem entender a falta da divisão dos níveis para os abastados, os pobres; sem entender a falta de espaço no fundo da igreja para os devedores assistirem às cerimônias religiosas.


Na soleira da porta que unia a Sala das Imagens ao altar, assistia a tudo com um aperreio desguiando meu olhar. Parecia que uma névoa fina confluía para a penumbra da fisionomia das pessoas, tudo era tênue e vago. Ouvia um burburinho de vozes e choros de crianças abafados pelo latim, sentia o cheiro dos santos óleos e via os religiosos salgando inocentes com aquela fé sem irmandade, estranha.


Olhei para o fundo da igreja onde estavam os rostos que já vira antes na ponta da espátula. Ali estavam Ana das Letras com uma criança nos braços, ladeando Quilimério e Laurina; ao lado o Beato, fisionomias impassíveis esperavam sua vez.


Na medida em que se aproximaram, o frade olhou Antônio Conselheiro com desprezo como se enxergasse só dissimulação e loucura. Mas sua figura era mansa e contrastante ao jeito como o via aquele outro olhar. Ele rezava em voz baixa. Semelhava paz.


Naquele momento senti uma emoção diferente, era como se o Beato estivesse tentando me contaminar com sua fé; senti as lágrimas quentes me escorrerem pelo rosto. Nos braços de Ana das Letras, a criança recebia o sacramento. Quando a água benta foi despejada na sua cabeça, foi como se uma labareda de fogo queimasse a minha, e mil demônios estivessem me dominando. Um dolorimento laçou minhas pernas e caí para um nada, um escuro, um vazio sem fim.


Minha boca soltava um mormaço ao respirar. Foi o que senti quando acordei... estava debruçado na mesa e tinha a certeza de que estava só, mas não. No canto da sala os vi reunidos e encolhidos, rezando uma oração numa língua estranha, pensei latim mas não era; as palavras saíam da boca como se, ao choque com o ar, lançassem estilhaços de sílabas que vagavam até meus ouvidos.


Procurei por ela, já não estava ali. Ninguém estava ali. Senti um cheiro muito forte de suor... Na tela em cima da mesa apenas o papel-barro esparramado, nada havia feito. Silêncio, tinha vagado pelo mistério que consentia e me consumia, sentia no ar o cansaço me possuindo e ouvia um padre estrangeiro fazendo seu relatório ao bispo que dormia, todo mês, escondido com a mulher do juiz. Agora presenciava os comborços relatando ao barão o que o padre viu e o mesmo padre recitando em praça pública as prédicas de São Francisco de Assis.


Um homem gordo reclamava de não ter braços para o trabalho em suas terras, enquanto pagava os contos de réis ao miserável que vendia a filha mais nova para coitos e servidão. O interlocutor vestindo riquezas e soberba reclamava das listas de votações.


E os deseleitos seguindo em procissões, fome e silêncios procurando um caminho de validar a vida.


***


Muitas horas imprecisas e depois a presença de Anabel no pensamento. Tentava entender o que sentia - o amor que nascia na minha agonia. Fechava os olhos e tinha sonhos, me via ao seu lado como se amantes fôssemos num reino onde andávamos pelas ruas de mãos dadas.


Tudo do meu dia, quando não estava enlouquecido pelas minhas alucinações, remetia a ela. A pele macia do seu corpo era o centro do meu; me imaginava inventado por ela em vigor e harmonia. E acordava na minha realidade, velho, muito velho e enlouquecido, com respostas para a emoção e nenhuma para o corpo... amor incompleto, possível e profundo. Sabia de alguma forma tê-la e de outra, construía na mente somente para ser lembranças de enlevos e prazer.


Sonhava poemas com o que meu corpo ainda lembrava. Éramos, sim, neles, um homem e uma mulher. Sim, eu a amava enquanto aquela espécie de morte e vida se completava.


***


Era uma só voz que parecia ressoar como se fossem muitas, dizia ritmado, pungindo o silêncio dentro de quem acorda:

nossos pés
andaram ermos
e estradas
nossas mãos
limitações
e procura
nossas bocas
sede
e fome
cheirávamos no ar
cansaço
e pó
ouvíamos um Deus
ausente
e pobre
conjugando com poderosos
descaso
e dor
e mesmo assim
morremos
irmãos

Mal abri os olhos, e lá estavam todos à minha frente; fisionomias que eu não sabia de onde me eram familiares. Um rosto de mulher mais que os outros.


Ela me estendia a mão e se dizia Rita das Dores. Eu a enxergava agora em meio aquela cor de terra e de solidão; amornava, enrolada na colcha de merinó e na satisfação do corpo farto de amor, varando aquela noite de horas calmas.


Um ar silencioso, leve e úmido, próprio de chuva na estia, se instalou suavemente. Pela janela ela via o céu desnublando e esperava as estrelas sonhando com cada momento que ainda tinha por viver; nem notou o clarão do dia apagando a noite; pareceu que ouvia o estalo de cada pé de cana da ressoca que a chuva trouxe.


A boca seca reclamava pela água fresca da quartilha apanhada na biqueira do telheiro. Serviu e bebeu gole a gole olhando a tifanga armada no canto do cômodo, vazia de seu corpo acalmado depois de calor e bramuras espalhados pela noite - amor solitário encenado por entre o rendilhado - um queixume do corpo e da alma saciado pelas mãos, mentindo amor.


Ali se amava, ali muitos a possuíram. Vi todos eles como um bando de urubus voando em círculos, alguns chegaram a querê-la de fato. Via Rita das Dores esquecida naquela encruzilhada de caminhos vindos de todo lugar, subjugada pelos interesses dos abastados; donos das terras vestidas de canaviais viçados que a seca judiava mas nunca despia.


Era o lugar onde os caminhos se misturavam e se desmisturavam... gente do longe. Uns com a liberdade nos olhos, outros escravos da necessidade, mas todos carregando o peso da seca esturricando suas vontades.


Escravos libertos, vaqueiros, meeiros, tropeiros e gente de toda desocupação que tinha no mundo, chegavam sempre procurando ou escondendo alguma coisa; por ali passavam e eu os via, todos em círculos em volta da carne tenra da mulher.



Era, naquele sertão onde a caatinga começava a adensar, a cacimba que mais demorava a secar: a de Rita das Dores, via seu corpo, perene para a luxúria, deitar com todos, sem enlevo algum; desdava-se naquela hora como se cumprisse uma sina. O encanto só encontrava na solidão das noites, quando copulava às poucas chuvas, algumas estrelas, qualquer réstia de luar ou um vigor de mormaço; assim esperava a vida no seu prazer solitário.


Sentia o enlevo: a vi sem lágrimas esperando embuchar de cada homem com quem deitava. Esperava os filhos que seu ventre teimava em não gerar e que sua velhice um dia iria reclamar.


Vaguei junto com Beleléu, juntando as cazumbas que a seca ia pondo no chão; o salitre abundante naquelas terras cuidava quase curtir o couro.


Ia a pé puxando os dois jumentos encangalhados. Num, entramelado, levava dois surrões com ossos, cabeça e chifres; no outro montava uma sobre as outras as peles ressequidas. Sentia forte a sensação de vida indo buscar na morte o pão.


Com os urubus ele dividia os despojos do gado, o mau cheiro e a secura do lugar. Pra si guardava a inveja dos vaqueiros andejando lugares, merecendo tanta atenção.


Roedeira dava no seu peito, amargava, não havia jeito de abrandar. Andava em roda do quixó, cuidando com o rabo do olho, maldando cada gesto que ela fazia, era sua danação e seu mais bem olhar. No lugar só achegava gente novidadeira, trançando boatos, com um jeito de leriado que ele corejava com entojo. Não podia um desatino de maltratar esses uns. Entrava nos seus pensamentos, seu querer, remansando de amor.


Querelante só pra si mesmo, assim ficou, fingindo lidar com os jumentos amarrados longe por causa do cheiro. Rodeava a cacimba muitas vezes antes de tirar a água, cuidando o olhar até ser notado por Das Dores. Quando ela olhou, parecia enxergar a mim não a ele.


Pensei ter sonhado aquelas fisionomias e aquelas vozes - pensei ter estado com eles no meio da desesperança e assim, no sonho de cada um deles, filhos pra velhice e a quentura dum querer no rude vaquejando restos de vida pela caatinga.


Não sabia se dormia ou se estava acordado. De algum modo, novamente estive entre eles enquanto moldava o semblante de cada um. Estavam lá no papel-barro, no cinzento do ar triste, tomando conta do meu cansaço e das notas da música.


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MQ
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