terça-feira, 17 de março de 2009

MACHADO DE ASSIS

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Publicado em A Semana - Gazeta de Notícias em 22/07/1894


ANTÔNIO CONSELHEIRO é o homem do dia; faz-me lembrar o beribéri. Eu acompanhei o beribéri durante muitos anos, pelas folhas do Norte, principalmente do Maranhão e do Ceará. Via citadas as pessoas que adoeciam do mal, que eu não conhecia e cujo nome lia errado, carregando no i: lia beribéri. Confesso este pecado de prosódia, esperando que os meus contemporâneos façam a mesma coisa, ainda que, como eu, não tenham outros merecimentos. Quem tem outros merecimentos, pode claudicar uma vez ou duas. Ao duque de Caixas ouvi eu dizer – míster; mas o duque tinha uma grande vida militar atrás de si. Que feitos militares ou civis tem um senhor que eu conheço para dizer eleiçãos?

Mas, tornando ao meu propósito, eu li os casos de beribéri por muitos e dilatados anos. Acompanhei a moléstia; vi que se espalhava pouco a pouco, mas segura. Foi assim que chegou à Bahia, e anos depois estava no Rio de Janeiro, de onde passou ao Sul. Hoje é doença nacional. Quando deram por ela, tinha abrangido tudo. Ninguém advertiu na conveniência de sufocá-la nos primeiros focos.

O mesmo sucedeu com Antônio Conselheiro. Este chefe de bando há muito tempo que anda pelo sertão da Bahia espalhando uma boa nova sua, e arrebanhando gente que a aceita e o segue. Eram vinte, foram cinqüenta, cem, quinhentos, mil, dois mil; as últimas notícias dão já três mil. Antes de tudo, tiremos o chapéu. Um homem que, só com uma palavra de fé, e a quietação das autoridades, congrega em torno de si três mil homens armados, é alguém. Certamente, não é digno de imitação; chego a achá-lo detestável; mas que é alguém, não há dúvida. Não me repliquem com algarismos eleitorais; nas eleições pode-se muito bem reunir duas e três mil pessoas, mas são pessoas que votam e se retiram, e não se reúnem todas no mesmo lugar, mas em seções. Casos há em que nem vão às urnas; é o que elegantemente se chama pico de pena. Uns dizem que este processo é imoral; outros que imoral é ficar de fora. Eu digo, como Bossuet: “Só Deus é grande, meus irmãos!”

Como e de que vivem os sectários de Antônio Conselheiro? Não acho notícia exata deste ponto, ou não me lembro. Se não têm rendas, vivem naturalmente das do mato, caça e fruta, ou das dos outros, como os salteadores. A verdade é que vivem. A crença no chefe é grande; Antônio Conselheiro tem tal poder sobre os seus amigos, que fará deles o que quiser. Agora mesmo, no primeiro ataque da força pública, sabe-se que eles, baleados, vinham às fileiras dos soldados para cortá-los à facão, e morrer. Entretanto, eles têm amigos estabelecidos à sombra das leis. Um telegrama diz que de Alagoinhas mandaram pólvora e chumbo ao chefe. Apreenderam-se caixões com armas Comblaim e Chuchu. Dizem as notícias que não se pode destruir tal gente com menos de seis mil homens de tropa. Talvez mais; um fanático, certo de ressuscitar daí a quinze dias, como ele assegura, vale por três homens.

Há um ponto novo nesta aventura baiana; está nos telegramas publicados anteontem. Dizem estes que Antônio Conselheiro bate-se para destruir as instituições republicanas. Neste caso, estamos diante de um general Boulanger
[1], adaptado ao meio, isto é, operando no sertão, em vez de o fazer na capital da República e na câmara dos deputados, com eleições sucessivas e simultâneas. É muita cousa para tal homem; profeta de Deus, enviado de Jesus e cabo político, são muitos papéis juntos, conquanto não seja impossível reuni-los e desempenhá-los. Cromwell derrubou Carlos I com a Bíblia no bolso, e não ganhou batalha que não atribuísse a vitória a Deus. “Senhor – escrevia ele ao presidente da Câmara dos Comuns, - senhor, isto é nada menos que Deus; a ele cabe toda a glória”. Mas, ou me engano, ou vai muita distância de Cromwell a Antônio Conselheiro.

Entretanto, como a alma passa por estados diferentes, não é absurdo que o atual estado da do nosso patrício seja a ambição política. Pode ser que ele, desde que se viu com três mil homens armados e subordinados, tenha sentido brotar no espírito profético o espírito político, e pense em substituir-se a todas as Constituições. Imaginará que, possuindo a Bahia, possui Sergipe, logo depois Alagoas, mais tarde Pernambuco e o resto para o norte e para o sul. Dizem que ele declarou que há de vir ao Rio de Janeiro. Não é fácil, mas todos os projetos são verossímeis e, dada a ambição política, o resto é lógico. Ele pode pensar que chega, vê e vence. Suponhamos nós que é assim mesmo; que as calamidades do tempo e o espírito da rebelião se dão com as mãos para entregar a vitória, ao chefe da seita dos Canudos. Canudos é, como sabeis, o lugar onde ele e o seu exército estão agora entrincheirados. Isto suposto, que será o dia de amanhã?

Lealmente, não sei. Não sou profeta. Se fosse, talvez estivesse agora no sertão, com outros três mil sequazes, e uma seita fundada. E faria o contrário daquele fundador. Não viria aos centros povoados, onde a corrupção dos homens torna difícil qualquer organização sólida, e o espírito de rebelião vive latente, à espera de oportunidade. Não, meus amigos, era lá mesmo no sertão, onde os bichos ainda não jogam nem são jogados; era no mais fechado, áspero e deserto que eu levantaria a minha cidade e a minha igreja.

Antônio Conselheiro não compreende essa vantagem de fazer obra nova em sítio devoluto. Quer vir aqui, quer governar perto da rua do Ouvidor. Naturalmente, não nos dará uma Constituição liberal, no sentido anárquico deste termo. Talvez nem nos dê uma cópia ou imitação de nenhuma outra, mas algumas cousa inédita e inesperada. O governo será decerto pessoal; ninguém gasta paciência e anos no mato para conquistar um poder em entregá-los aos que ficaram em suas casas. O exemplo de Orélie-Antoine I (e único), rei dos Araucânios, não o seduzirá a por uma coroa na cabeça. Cônsul e protetor são títulos usados. Palpita-me que ele se fará intitular simplesmente Conselheiro, e, sem alterar o nome, dividi-lo-á por uma vírgula: “Antônio, Conselheiro, por ordem de Deus e obediência do povo...” Terá um conselho, câmara única e pequena, não incumbida de votar as leis, mas de as examinar somente, pelo lado ortográfico e sintático, pelo número de letras consoantes em relação às vogais, idade das palavras, energia dos verbos, harmonia dos períodos, etc., tudo exposto em relatórios longos, minuciosos, ilegíveis e inéditos.

Venerado como profeta, obedecido como chefe de Estado, investido de ambos os gládios, com as chaves do céu e da terra na gaveta, Antônio Conselheiro terá o seu poder definitivamente posto? Como tudo isto é um sonho, sonhemos que sim; mas Oliveiro terá um Ricardo por sucessor, e a obra do primeiro perecerá nas mãos do segundo, sem outro resultado mais que haver o profeta governado perto da rua do Ouvidor. Ora, esta rua é o alçapão dos governos. Pela sua estreiteza, é a murmuração condensada, é o viveiro dos boatos, e mais mal faz um boato que dez artigos de fundo. Os artigos não se lêem, principalmente se o contribuinte percebe que tratam de orçamento e de imposto, matérias já de si aborrecíveis. O boato é leve, rápido, transparente, pouco menos que invisível. Eu, se tivesse voz no conselho municipal, antes de cuidar do saneamento da cidade, propunha o alargamento da rua do Ouvidor. Quando este beco for uma avenida larga em que as pessoas mal se conheçam de um lado para outro, terão cessado mil dificuldades políticas. Talvez então se popularizem os artigos sobre finanças, impostos e outras rudes necessidades do século.

[1] Militar e político francês Boulanger, provocador de
um acesso de febre militarista que ameaçou as instituições republicanas daquele
país entre 1885 e 1889.

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