terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Ninguém me Conhece: 29) Nelson Machado, un Brasiliano

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Foi depois de um show em alguma cidade da Itália, não me recordo qual. Já era madrugada. Voltava ele pra casa (mais especificamente, Bolonha), cansado, com sono, pensando num bom banho quente, uma taça de vinho, quiçá. Naquelas ermas horas ele não podia imaginar que passaria cerca de um ano sem voltar pra casa. Tudo foi muito rápido, diria mesmo cinematográfico (as tragédias sempre têm um quê de cinema). Foi como na canção de Toquinho e Vinicius que dizia que "Ao cruzar a rua você está arriscando/ Pode estar na lua, pode estar amando/ Passa um caminhão, cruza uma perua/ O cara tá na dele, você tá na sua [...]". É, o cara tava na dele, ele tava na sua, de repente, numa fração de segundos, lá estavam ambos desafiando as leis da física, dois corpos ocupando o mesmo espaço. Agora não vem ao caso saber quem estava errado, este não é um roteiro de filme policial. Tampouco importa investigar o que sucedeu com o outro, visto que ele não passou de um (trágico) figurante nessa história. Importa saber o que aconteceu com o protagonista, Nelson Machado: A partir daí, sua vida se resumiu a sofrimento, dor, desilusão, sucessivas cirurgias de reconstituição, placas disso e daquilo pelo corpo... E o pior, segundo o diagnóstico do médico, ele jamais poderia voltar a tocar!

Voltemos no tempo pra relembrar uma noite bem distinta daquela. Mais precisamente no bairro paulistano do Bixiga, no finado (e saudoso) Boca da Noite. Nessa noite
Élio Camalle me apresentou a Nelson, seu amigo de longa data. Boa pinta, boa praça, boa prosa; noite passando fácil e ligeira e Nelson me contando um pouco de suas aventuras. Ele se formara em violão erudito, mas a paixão pela música popular levou-o a mudar de galho. Claro que o erudito ajudou na sofisticação harmônica, na disciplina com os estudos, mas João Gilberto venceu essa queda de braço com Villa-Lobos. Daí pra tocar em bares foi um pulo. Passagem pelo Rio, claro, e passagem (aérea) comprada (só de ida) pra Itália. História um tanto parecida com a de Vasco Debritto, com o qual, aliás, sua vida iria cruzar, mas a seu tempo. Por ora basta dizer que ele, de férias no Brasil, tinha feito um novo amigo: eu.

A parceria, no entanto, não foi tão fácil assim. Mandei-lhe umas letras (daquelas da pastinha verde), porém, nem estas eram boas, nem ele era bom em musicar letras. O negócio dele era fazer a melodia antes, como outros antes aqui relatados. Nessa época eu nem havia conhecido
Kana ainda, que foi com quem aprendi (a duras penas) a letrar melodias. Nelson voltou pra Bolonha e eu, pra Americanópolis. Acho que ainda nos vimos em suas férias posteriores, até que eu soube do acidente. Mas a estrela de Nelson brilhava ainda mais forte no céu escuro de suas noites frias naquele leito de hospital. Desenganado, desenganou o médico. Um ano depois, já estava tocando violão quase tão bem quanto antes. Claro que o cansaço vinha mais depressa, mas os dedos obedeciam ao comando do dono. Mais alguns meses e já estava de volta à sua velha rotina. Com um diferencial: Morador da Itália, acidentado lá, recebera do governo uma compensação em dinheiro que lhe possibilitou, entre outras coisas, gravar um CD com as várias canções inéditas que havia composto nos anos posteriores ao diagnóstico del dottore. Fosse no Brasil, ou estaria morto ou mal pago.

Ressuscitado, este Lázaro cantautore tinha pressa. E aqui entro de novo, pois fui justamente eu quem veio à sua memória quando pensou em letrista. Passou por cima da pastinha verde e resolveu me dar nova chance, dessa vez despejando em meu colo mais de uma dúzia de belíssimas melodias, pras quais me pediu gentilmente que pusesse letra, mas... Pra ontem! Nessa época me senti o próprio Chico compondo com Edu Lobo pra, sei lá, O Grande Circo Místico. Quero dizer, considerando as devidas distâncias, senti-me um profissional capacitado a trabalhar obedecendo a prazos curtos. O fim do ano chegou e, com ele, Nelson, esbaforido, querendo aproveitar aqueles poucos meses de férias pra gravar o tão esperado/adiado CD.

Mas muitos anos na Europa acabaram fazendo-o perder o contato com os músicos brasucas. Assim que, escolado pelo trabalho com
Kana em seus dois discos, acabei apresentando-lhe mais ou menos a mesma turma que gravara com ela seu Imitação. E no mesmo estúdio.
Acompanhei na íntegra a gestação deste Brasiliano (assim batizamos o CD), tão babão quanto qualquer pai (visto que todas as letras do CD eram minhas - uma, em parceria com Marciel Consani, é verdade). Quando, finalmente, com uma cópia em mãos, arranquei com fúria o plástico e pus a bolacha pra tocar em meu gasto aparelho de tanta quilometragem, conter a emoção não pude. Passou a ser meu cartão de visita. Todo mundo que vinha à minha casa não ia embora sem ouvir ao menos uma ou duas faixas do tal Brasiliano. Mais importante do que qualquer crítica de jornal foi presenciar a reação de
Adolar Marin ao ouvi-lo. O cara chapou! Tanto que, no dia seguinte, ligou-me perguntando se eu não havia sentido a falta de nada. Como eu não notasse, avisou-me: "Pega outra cópia com o Nelson, que aquela eu passei pro meu nome". Não é que o punguista me subtraíra o CD? Sorte minha que eu tinha outra de reserva. Futuramente, ao lançar seu não menos belo Atemporal, Adolar me confessou que durante todo o processo de gravação teve em mente atingir a qualidade do Brasiliano. Virou referência!

Foi munido de todas essas opiniões (
Camalle e Kana também o adoraram) que convenci o supracitado sr. Vasco Debritto a lançá-lo no Japão, por sua Koala Records. Lembro-me também de que, ainda na época das gravações, convidara Oswaldinho do Acordeon a tocar duas faixas no disco. Quando este foi embora, me agradeceu muito pela rara oportunidade que eu lhe dera de participar de um trabalho tão bom (palavras suas). Infelizmente, como nem tudo são flores, Nelson, marinheiro de primeira viagem, entregou seu CD nas mãos de alguns italiani furbi e acabou trilhando sua via-crúcis por burocráticas estradas até reaver o que era seu. Mas isso é uma outra história. A que interessa neste relato é a de um camarada que enfrentou a morte, venceu obstáculos e realizou um sonho. Claro que a vida continua, os sonhos se sucedem, e este não é um relato de autoajuda. Nelson, com seu CD debaixo do braço, aprendeu que realizar um sonho é apenas o primeiro passo nessa longa e esburacada estrada... E que sonhos custam caro! Ou seja, a verdadeira história começa depois do "e foram felizes para sempre"!Neste exato momento ele deve estar lá em Bolonha, passando frio e fundindo a cuca a imaginar como pode realizar seu mais novo sonho (que tem cara de uma equação daquelas matadoras de neurônios): voltar pro Brasil definitivamente sem perder a qualidade de vida e, mais difícil, sem perder la bella ragazza italiana que caiu em sua rede/lábia de pescador/cantor. De quebra, como o mundo não para pra que resolvamos questões urgentes, ainda planeja gravar um novo CD nas prováveis férias de verão (o brasileiro, claro). Já me contactou, inclusive, pedindo-me pra manter a agenda livre nos meses de janeiro e fevereiro. Como não temos mais que uma ou duas canções prontas, novamente imagino que este Chiquinho do Ceará vai ter que se virar em dois pra dar conta de mais este Cambaio.

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Ouça algumas das canções del brasiliano Nelson aqui: http://clubecaiubi.ning.com/profile/OXdoPoema

Leia as letras aqui: http://clubecaiubi.ning.com/profiles/blogs/nelson-machado

Nelson também está no Caiubi: http://clubecaiubi.ning.com/profile/NelsonMachado


Por Léo Nogueira - http://www.oxdopoema.blogspot.com/

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