terça-feira, 21 de setembro de 2010

RUY GODINHO – ENTÃO, FOI ASSIM?

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CARINHOSO
(Braguinha/Pixinguinha)

Meu coração
Não sei por quê
Bate feliz
Quando te vê
E os meus olhos ficam sorrindo
E pelas ruas vão te seguindo
Mas mesmo assim
Foges de mim
Ah! Se tu soubesses
Como eu sou tão carinhoso
E o muito e muito
Que te quero
E como é sincero o meu amor
Eu sei que tu
Não fugirias mais de mim
Vem, vem, vem, vem
Vem sentir o calor
Dos lábios meus
À procura dos seus
Vem matar esta paixão
Que me devora o coração
E só assim, então
Serei feliz
Bem feliz
Então, foi assim...
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Alfredo da Rocha Viana Júnior, o Pixinguinha1, compôs Carinhoso em 1917 e o manteve inédito por mais de dez anos. Ele se justificou no depoimento que concedeu ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro – MIS, em 1968, dizendo que “naquele tempo o pessoal nosso da música não admitia choro assim de duas partes. Então eu fiz o Carinhoso e encostei. Tocar o Carinhoso naquele meio! Eu não tocava... Ninguém ia aceitar”.

Na época, havia uma convenção bastante respeitada pelos compositores em se criar apenas choros em três partes, influenciada pelo esquema da polca.

A música foi gravada pela primeira vez, em dezembro de 1928, pela Orquestra Típica Pixinguinha-Donga. Em seguida, ainda sem a letra, teria mais duas gravações: em 1929, pela Orquestra Victor Brasileira, dirigida por Pixinguinha e, em 1934, pelo bandolinista pernambucano Luperce Miranda. Em ambas a grafia era Carinhos e seguiu sem o conhecimento do grande público.

Mas, a história de Carinhoso estava quase para mudar radicalmente. É que, em outubro de 1936, encenava-se no Teatro Municipal do Rio de Janeiro o show beneficente Parada das Maravilhas, idealizado pela primeira-dama do país, dona Darci Vargas, em prol da Pequena Cruzada, uma obra assistencial. A atriz e cantora Heloísa Helena, que foi uma das convidadas a participar do evento, recorreu a João de Barro, o Braguinha2. Como ele não dispunha de uma canção inédita para a apresentação, Heloísa sugeriu que Braguinha colocasse letra numa música já existente, o choro Carinhoso, de Pixinguinha.

O letrista procurou imediatamente o autor, que trabalhava no Dancing Eldorado, localizado na Rua do Teatro nº 37, em frente ao Teatro João Caetano, onde hoje funciona o Centro Cultural Carioca. Ali mesmo, com Pixinguinha ao piano, aprendeu a melodia. No dia seguinte, fez a letra e a entregou para Heloísa, que, de tão satisfeita, o presenteou com uma bela gravata italiana.

Carinhoso se tornaria um dos maiores clássicos da MPB ao ser gravado, em 1937, pelo Cantor das Multidões, Orlando Silva, que inclusive a adotou como prefixo musical de suas apresentações. Porém, antes de gravá-la, Orlando Silva não estava muito satisfeito com a letra. Foi o bastante para que Edmundo, seu irmão, procurasse o compositor Pedro Caetano – de quem era amigo – e sugerisse uma nova letra. Pedro, sabedor que Orlando apreciava as suas composições, não vacilou e a escreveu:

“Na mansidão
Do teu olhar
Meu coração
Viu passear
Uma feliz
E meiga bonança
Quis alcançar
Sentiu esperança
Mas viu fugir
Sem lhe sorrir
Preso à sensação
Daquele quadro
Que a ilusão
Descortinou tão docemente
Bate cegamente a suspirar
Por uma luz
Que mal surgiu, viu-se apagar
Vem, vem, vem, vem
Traz ao fosco brilhar
Dos olhos meus
A carícia dos teus
Vem sentir o quanto é bom
E carinhoso, vem afagar
Este coração
Que a solidão quer matar”

Essa outra letra permaneceu como ‘segredo de Estado’ até que Pedro Caetano 3 confessasse: “se soubesse que (...) era de Braguinha, jamais teria a audácia de querer competir, mesmo porque, naquele tempo, em nosso meio havia muito respeito entre os colegas de profissão”. E afirma ainda: “hoje (1988), sinceramente, não acho graça nenhuma [de sua própria letra], pelo sentido um tanto piegas dos versos e a cafonice de palavras já em desuso”.

Talvez, pelo estrondoso sucesso alcançado, Orlando Silva desejou creditar a si a idéia de pedir a Braguinha uma letra para Carinhoso. Pelo menos era o que afirmava nas entrevistas. Mas Braguinha o desmentiu categoricamente. Em entrevista ao programa MPB Especial, da TV Cultura de São Paulo, em 1973, declarou: “Reconheço e agradeço muito ao Orlando a gravação de Carinhoso, que na sua voz tornou-se um grande sucesso, ele que naquela época era o cantor mais popular do rádio. Mas, a bem da verdade, foi isso que se passou”. E relatou a história de Heloísa.

O assédio sobre a melodia não parou por aí. Jonas Vieira4 afirma que o poeta, compositor e produtor cultural Hermínio Bello de Carvalho presenciou, certa vez, uma calorosa discussão entre a atriz e cantora Aracy Cortes e Pixinguinha sobre o aproveitamento da letra de Braguinha. Aracy afirmava que havia feito uma letra muito melhor e que Pixinguinha não teria se empenhado em aproveitá-la.

O choro Carinhoso, de Pixinguinha, com a letra de Braguinha, foi escolhido em pesquisa realizada no fim do século XX, como uma das músicas preferidas por brasileiros de todas as gerações.

1 23/4/1897 Rio de Janeiro-RJ 17/02/1973 Rio de Janeiro-RJ.

2 Carlos Alberto Ferreira Braga 29/3/1907 Rio de Janeiro-RJ 24/12/2006 Rio de Janeiro-RJ.
3 54 Anos de Música Popular Brasileira: o que fiz, o que vi.

4 Orlando Silva: o Cantor das Multidões.


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Ruy Godinho
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2 comentários:

  1. Legal saber a história das músicas!

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  2. Toda terça feita será postado a história de uma composição copilada do livro "Então, foi assim?" do radialista jornalista e escritor Ruy Godinho, acompanhe Anônimo(a)

    Abraços

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